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img: Canal NETmundial+10

NETMUNDIAL+10 como catalisador de um multissetorialismo efetivo?

10/06/2024

Murilo Nazareth, Mestrando em Relações Internacionais (USP)

O NETMundial +10 foi um evento multissetorial e global realizado em abril de 2024, em São Paulo, com o objetivo de reforçar a governança da internet após uma década do NETmundial ter publicado, em consenso, tanto “princípios para a governança da internet” quanto um “roteiro para a evolução futura do ecossistema de governança da internet”. A iniciativa mais recente visou um debate de alto nível sobre os desafios globais que permeiam a governança do mundo digital. Assim, conforme explicitado pela declaração conjunta, as discussões foram realizadas em torno de como potencializar o processo de governança multissetorial e não exatamente sobre os conteúdos de políticas digitais. O presente artigo visa construir uma crítica que explora duas perspectivas sobre o NETMundial+10 e o multissetorialismo, sendo uma otimista e outra pessimista. 

O contexto histórico do NETMundial

Simbolicamente, a mesa de abertura do NETMundial+10, moderado pelo secretário executivo do CGI.br, Hartmut Glaser, contou, entre outras pessoas, com representantes de Brasil (Luciano Mazza e Luciana Santos), Alemanha (Irina Soeffky), e Estados Unidos (Susan Chalmers). O simbolismo desta mesa de abertura visou uma continuidade com o evento de 2014, destacando o envolvimento dos três países nos acontecimentos no início da década de 2010, quando Edward Snowden revelou os esquemas de espionagem global da National Security Agency do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Neste momento, havia escândalos diretos de monitoramento e vigilância das líderes Dilma Rousseff, do Brasil, e da chanceler alemã, Angela Merkel. Além disso, apontava uma estrutura de vigilância e espionagem em nível nacional e internacional, que explorava tanto a camada de infraestruturas de telecomunicações quanto aplicações e serviços, com evidências de que os EUA desenvolveram meios para coletar, armazenar e processar enormes quantidades de dados gerados pelos fluxos de informações na Internet, ao longo de anos.

Enquanto após o fim da CMSI, em 2005, os anos subsequentes pareciam ter encontrado um formato ideal de participação multissetorial neste processo de governança, a década de 2010 foi crítica para uma série de mudanças em um contexto que parecia estável. É exatamente neste sentido que o Brasil assumiu um protagonismo – que rapidamente se esvaiu – dos processos internacionais de regulação e gestão da rede global. O resultado do NETMundial apontou um conjunto de princípios comuns e valores cruciais que promovem uma estrutura de governança da Internet inclusiva, multissetorial, eficaz, legítima e em constante evolução. 

Em 2014, o governo chinês criou e sediou a World Internet Conference (WIC),  que tem como característica a cooperação e o estabelecimento de parcerias focadas em soberania digital, cibersegurança e economia digital. No mesmo ano, o NETMundial teve em seu discurso de abertura a presidenta Dilma Rousseff argumentando que não se deve criar um dualismo antagônico entre multissetorialismo e multilateralismo, pois estes são complementares e portanto se faz necessário pensar caminhos para o fortalecimento de uma governança da internet mais democrática. Além disso, ficou registrado no documento final  de 2014 a Internet como um recurso global que requer gestão no interesse público. Os princípios estabelecidos eram: (i) multissetorial; (ii)  Governança aberta, participativa e impulsionada por consenso; (iii) Transparente; (iv) Responsável; (v) Inclusivo e equitativo; (vi) Distribuída; (vii) Colaborativa; (viii) Habilitante da participação significativa; (ix) Acesso e barreiras mínimas; (x) Agilidade.

No ano seguinte, a declaração final do NETMundial se tornou um dos tópicos principais de discussão no IGF 2015, apresentando como novos princípios passaram a ser discutidos nos fóruns subsequentes. E, posteriormente, em 2016 se encerrou a tutela que o governo dos EUA exercia sobre a IANA em um contrato com a ICANN. Ora, se os IGFs foram apresentados enquanto a estrutura base de discussões sobre a governança da internet, torna-se claro que o NETMundial foi bastante significativo, advogando para uma necessidade de repensar as estratégias de governação da internet. Neste período o evento teve um poder transformador para a governança da internet.

A década da governança global da internet e o NETmundial+10

O que aqui está sendo chamado de década da governança global da internet é o período entre 2014 e 2024, isto pois após a conjuntura crítica evidenciada pelo Caso Snowden, muito se evoluiu neste tempo. Esta conjuntura foi crítica ao apontar caminhos distintos tomados no ecossistema de governança da internet, sendo a origem da divisão em três modelos de governança vigentes hoje: “multissetorialismo”, “novo multilateralismo” e “multilateralismo”, respectivamente liderados por EUA, União Europeia e China. O NETMundial+10 emergiu, portanto, com o propósito de aprimorar os processos de governança da Internet e políticas digitais, na tentativa de lidar com as transformações que a inovação tecnológica promove dia após dia. Os mais entusiastas do evento afirmam que, ainda que não seja vinculativo, o documento final do evento possui um caráter bottom-up, aberto e pluriparticipativo envolvendo diferentes stakeholders de todo o mundo.

Conforme está explícito no documento , “é hora de abordar a questão persistente não resolvida: como ajudar todos os atores a contribuir para um processo multissetorial para criar uma arquitetura de governança global em rede que seja centrada nas pessoas, sustentável e orientada para o desenvolvimento, conforme exigido pela sociedade em rede.” Este que é um problema central e repetitivo, ora se o primeiro NETMundial foi um questionamento explícito da centralidade do governo estadunidense na governança da internet, desde o início do processo o desequilíbrio de poder era algo destacado. Ao mesmo tempo que o evento de 2014, no Brasil, foi um dos marcos para as transformações dos anos seguintes, hoje, após uma década, parece que o mesmo problema resistiu a ser solucionado.

A pergunta do título deste artigo está relacionada com as diretrizes que o NETMundial +10 buscou apresentar no que tange à inclusão significativa das partes interessadas na governança. Busca-se “medidas para capacitar as partes interessadas mais fracas, garantindo que as suas vozes sejam ouvidas e valorizadas, avançando em direção a um modelo multissetorial genuinamente inclusivo e eficaz.”. Entretanto, há uma diferença significativa entre dizer que precisar dar voz e criar meios para que vozes sejam ouvidas, conforme afirma o líder do Internet Governance Project Milton Mueller: “Não dizemos nada significativo sobre questões de representação ao dizer ‘todos devem ser representados em todos os lugares ao mesmo tempo’. Isso é apenas uma maneira bonita de evitar a questão.”

Primeiro, é neste sentido que torna-se explícita a fragilidade do ideal multissetorial. Se na década de 2014 o NETMundial foi o princípio deste ideal multissetorial que enfrentava a governança de organizações sem fins lucrativos do setor privado, majoritariamente oriundas dos EUA, com atuação transnacional, hoje, este ideal acabou. O próprio NETMundial+10 foi um processo mal elaborado, às pressas, e decepcionante à medida em que o CGI.br tomou a liderança e seletivamente convidou participantes, além de promover consultas abertas, mal feitas e que não conseguiam absorver a percepção das partes interessadas, estas que tampouco foram compiladas no documento final. Há também uma compreensão de que o multissetorialismo se tornou um conceito falho à medida que a busca por consenso entre as partes interessadas fica extremamente lenta e nula nos fóruns de discussão, pelo fato de que há pouquíssimo consenso entre os membros de dentro das próprias partes. Assim, é preciso repensar o que define uma parte interessada ao ponto que cada ator tenta obter regras que beneficiem a si.

Neste sentido, torna-se imprescindível apontar que no NETMundial+10 que teve como objetivo impulsionar o multissetorialismo, teve uma baixíssima adesão da parte governamental – comparada tanto aos outros setores quanto ao evento de 2014. Isso indica uma falta de relevância do evento. Atualmente, os três modelos de governança mencionados anteriormente são frutos de uma existente fragmentação em diferentes espaços onde as discussões sobre governança da internet acontecem. Assim, embora tenha um histórico relevante devido ao evento de 2014, o NETMundial+10 pode ser apenas mais um evento que não promova muitos resultados no ecossistema de governança. Afinal, sob a liderança do CGI.br, a declaração multissetorial nega a dicotomia com o multilateralismo, valorizando e reafirmando os princípios de 2014, de modo a abordar problemas superficialmente e constantemente reafirmar a importância de inclusão de diferentes stakeholders pois o multissetorialismo poderia ser fortalecido com algumas características multilaterais.

Por fim, os objetivos do NETMundial+10 eram claros mas não foram atingidos conforme o esperado.  Este não foi um evento irrelevante, tampouco algo que irá novamente transformar o ecossistema de governança da internet. Entende-se portanto que este não foi um “catalisador” do multissetorialismo, isto pois o modelo multissetorial está em decadência, e enquanto o evento buscou fortalecer e potencializar este ideal, o multissetorialismo não se mostrou efetivo na busca por consenso dentro do próprio evento. Por outro lado, considera-se importante os apontamentos descritos no documento final, mesmo que sejam, em suma, reafirmação de princípios de 2014, há de se atentar para os novos problemas de governança, e àqueles como a assimetria de poder que ainda não foi solucionado desde que apontado na década passada.