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Artigo

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Convergências das expectativas da presidência do Brasil e do CGI.br no Pacto Global Digital
09/04/2025
Murilo Nazareth, Mestrando em Relações Internacionais (USP)
No dia 22 de setembro de 2024, o presidente brasileiro Lula da Silva discursou na abertura da Cúpula do Futuro, em Nova York. Este evento busca adequar a governança multilateral às novas dinâmicas do mundo contemporâneo, que é mais complexo, rápido e mutável do que o sistema de governança estabelecido em tempos mais simples e lentos, com o objetivo de estabelecer um novo consenso internacional sobre como lidar com essas dinâmicas mais complexas e salvaguardar o “futuro da humanidade na terra”. Na prática, o evento foi constituído de uma série de discussões que culminaram na construção do Pacto para o Futuro com anexos da Declaração para as Gerações Futuras e do Pacto Global Digital (GDC – Global Digital Compact).
O Pacto Global Digital tem como objetivo assegurar a cooperação digital e fortalecer a governança multilateral em torno das questões de tecnologias digitais. Neste sentido, no discurso de abertura, o presidente Lula afirmou: “O Pacto Global Digital é um ponto de partida para uma governança digital inclusiva, que reduza as assimetrias de uma economia baseada em dados e mitigue o impacto de novas tecnologias como a Inteligência Artificial. Todos esses avanços serão louváveis e significativos. Mas, ainda assim, nos faltam ambição e ousadia.”. Antes do pacto houve um processo de contribuições abertas que durou de junho de 2022 até abril de 2023. Neste tempo, houve cinco contribuições especificamente brasileiras que aprofundaram as ideias gerais contidas nesse discurso de abertura do presidente: (I) ABRINT, (II) CGI.br, (III) Ação Educativa/ Tecla, (IV) Instituto Alana e (V) Capítulo Brasileiro da ISOC.
Aqui, entretanto, serão analisadas apenas as contribuições do Comitê Gestor da Internet, que, criado em 1995, tem como competência a definição de diretrizes para o uso da Internet, administração do domínio “.br” e propõe programas de pesquisa e desenvolvimento para garantir qualidade técnica e inovação no setor. A escolha de análise apenas desta contribuição é devido à falta de espaço para observar todos os documentos brasileiros e, portanto, o CGI.br possui uma relação mais próxima das tomadas de decisão domésticas em questões relacionadas à governança.
O que é o Pacto Global Digital?
Após 20 anos da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação (WSIS), em 22 de setembro de 2024, representantes de Estados assinaram o Pacto Global Digital (GDC) como um anexo do Pacto para o Futuro adotado após as discussões da Cúpula para o Futuro realizada em Nova York. O GDC foi um marco para a Governança Global da Internet traçando um roteiro para a cooperação digital global, que visa tanto aproveitar as potencialidades das tecnologias quanto reduzir as desigualdades digitais. Sua origem direta está relacionada com o Painel de Alto Nível Sobre Cooperação Digital (2018 – 2019) e o Roteiro para Cooperação Digital (2020).
O Painel lançado pelo Secretário-Geral da ONU, em 2018, foi um grupo multissetorial designado para criar propostas para fortalecer a cooperação digital, divulgando em 2019, um relatório chamado A Era da Interdependência Digital, que destacou a necessidade de que a cooperação internacional se torne mais robusta a partir de cinco áreas: (i) economia e sociedade digital inclusiva, (ii) capacidades humanas e institucionais, (iii) direitos humanos e agência humana, (iv) confiança, segurança e estabilidade e (v) uma cooperação digital que tenha uma arquitetura dividida em três partes: o IGF Plus, uma Arquitetura de Governança Distribuída e uma Arquitetura de Bens Comuns Digitais.
Já o Roteiro para Cooperação Digital, lançado em 2020, apresenta as recomendações do Secretário Geral em temas de conectividade, inclusão digital, bens públicos digitais, direitos humanos, confiança e segurança, além de inteligência artificial. Mas principalmente, oferece uma tentativa de garantir que a cooperação digital seja fortalecida através do objetivo de tornar os IGFs mais relevantes e responsivos. Nesse mesmo ano, os Estados-membros das Nações Unidas firmaram um compromisso em construir uma visão compartilhada sobre a cooperação digital para um futuro que explore todo o potencial benéfico da tecnologia, priorizando questões de confiança e segurança digital.
Como resposta a esse conjunto de documentos pedindo por uma cooperação digital mais efetiva, em 2021 o Secretário-Geral lançou o relatório Nossa Agenda Comum, promovendo um futuro que priorize o multilateralismo, com as propostas da Cúpula do Futuro e do Pacto Global Digital, induzindo os princípios de “um futuro digital aberto, livre e seguro para todos”. No mesmo ano, foi criado o Escritório do Enviado de Tecnologia do Secretário-Geral, para implementação do Roteiro para a Cooperação Digital, coordenando entidades da ONU e grupos multissetoriais.
As contribuições do CGI.br
As contribuições para as consultas online para o Pacto foram divididas em oito áreas: (i) conectar todas as pessoas, (ii) fragmentação da internet, (iii) proteção de dados, (iv) direitos humanos online, (v) responsabilização por discriminação/ conteúdo enganoso, (vi) regulação de Inteligência Artificial (vii) bens digitais comuns, e (viii) outros. Para cada uma das áreas, cada contribuição deveria conter os princípios centrais e os compromissos, promessas e/ ou ações.
Na primeira área (i) “todas as escolas” junto a conectar todas as pessoas, o documento submetido pelo CGI.br enfatizou, defendendo nos princípios um acesso universal como ferramenta de desenvolvimento, uma infraestrutura digital significativa e inclusiva, além da cooperação sul-sul. Para tais princípios, o CGI.br defendeu o uso eficiente de ondas de rádio e satélites, iniciativas para alfabetização e capacitação digital.
Para evitar a fragmentação da rede, o conteúdo para consulta na segunda área (ii) do documento previu um princípio de que a garantia de soberania de Estados e pessoas não é incompatível com a garantia de uma Internet global, aberta e equitativamente acessível. Entre as ações, todos os grupos de interesse devem prevenir ações que alterem negativamente a coesão da Internet, os Estados devem buscar a cooperação digital a fim de construir marcos que salvaguardem a soberania e viabilizem a interoperabilidade jurídica internacional.
Como princípio, (iii) a proteção de dados e privacidade das pessoas deve ser garantida encontrando um equilíbrio entre a interoperabilidade jurídica internacional e a proteção de usuários em uma perspectiva centrada em seres humanos. Como recomendações, os Estados devem cooperar com os demais grupos de interesse compartilhando informações e melhores práticas para combater a exploração de dados. Também é responsabilidade dos Estados melhorar medidas de construção de confiança para fazer a transferência internacional de dados mais eficiente e justa.
Em relação aos direitos humanos online (área iv), a contribuição do CGI.br advogou para que sejam garantidos tanto online quanto offline, com o objetivo de ser inclusivo. O compromisso deve ser a consolidação de normas e princípios compartilhados que focam, especialmente, na proteção de grupos minoritários.
Considerando a quinta (v) das oito áreas que as consultas para o GDC foram divididas, o documento do CGI.br declarou ser necessário um reconhecimento do impacto da desinformação e do discurso de ódio como princípio-chave da responsabilização por discriminação e conteúdo enganoso. Tendo como compromisso a construção de estruturas para combater o discurso de ódio e a desinformação e que protejam a liberdade de expressão com responsabilidade. O comitê reafirma a continuidade dos diálogos multissetoriais neste assunto para pensar as melhores medidas que consigam combater os impactos negativos ao mesmo tempo que protejam os benefícios da Internet.
Na área (vi) é reafirmada a necessidade de um desenvolvimento centrado em seres humanos, em que a governança de IA tenha base em transparência e responsabilidade. Conforme explícito no documento do CGI, as IAs devem ser reconhecidas como uma tecnologia emergente com potencial de promover transformações positivas e disruptivas no tecido social. Entre as recomendações e ações o CGI.br afirmou que para a regulação de Inteligência Artificial, conceitos de ética, privacidade e segurança devem ser centrais e que os diálogos multissetoriais devem ser permanentes e fortalecidos para expandir as perspectivas sobre seu estudo, desenvolvimento, implementação e mitigação de riscos.
Para a sétima área (vii) o comitê defendeu que a governança multissetorial e inclusiva deve ser adotada como princípio fundamental para garantir bens públicos digitais, destacando seu papel como uma ferramenta essencial para o desenvolvimento centrado em humanos. Para isso, as plataformas digitais devem combater proativamente conteúdos ilícitos, considerando suas capacidades, responsabilidades e modelo de negócio. Além disso, a Internet e as TICs devem ser centrais nas discussões dos eventos multissetoriais globais.
As últimas contribuições do Comitê Gestor da Internet do Brasil na oitava área (viii) passaram pelo fortalecimento do Fórum de Governança da Internet e a integração com as agendas da WSIS+20 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. O princípio-chave é a potencialização dos diálogos multissetoriais inclusivos para construir soluções para a cooperação digital, seguindo o “sucesso da história da governança da internet como um ecossistema multissetorial”. Enquanto ações, é importante não esquecer que o princípio da inovação sempre guiou a governança da internet e, assim, o Pacto Global Digital e as futuras iniciativas devem sempre estar fundamentadas nos processos bem-sucedidos do passado: WSIS, NETMundial e os Fóruns de Governança da Internet.
Há convergência?
O Comitê Gestor da Internet no Brasil ofereceu princípios e diretrizes para todas as oito áreas citadas. O documento, de modo geral, enfatiza o multissetorialismo como princípio central a ser defendido, se sustentando em inovação, sustentabilidade e cooperação. Entre os principais pontos contidos no documento, destaca-se o fortalecimento da inclusão de grupos vulneráveis, defesa dos direitos no ambiente digital, alfabetização digital, infraestrutura digital acessível e a alfabetização digital. O documento reafirma a importância do Fórum de Governança da Internet tanto na coordenação e manutenção dos debates vigentes quanto na garantia de implementação do Pacto Global Digital, articulando com outras iniciativas como o WSIS+20 e os ODS. Por outro lado, o discurso de abertura do Presidente Lula foi bastante superficial e amplo em relação ao Pacto Global Digital, apontando apenas quais seriam os princípios que direcionam o posicionamento do Estado brasileiro em relação às negociações das questões digitais. Neste sentido, há convergência entre os princípios do documento submetido pelo CGI.br e os discursados pelo presidente na abertura da Cúpula do Futuro, especialmente no que diz respeito aos esforços por inclusão e redução de impactos das novas tecnologias.