A Doutrina Militar de Defesa Cibernética e seus desdobramentos na política externa brasileira
Séfora de Carvalho Pereira, 18/06/2021
Introdução
Este artigo tem por objetivo analisar de forma breve a Doutrina Militar de Defesa Cibernética Brasileira, buscando entender sua estrutura e formas de atuação. Ademais, também busca analisar as relações de cooperação externa entre o Brasil e os países vizinhos na matéria. O método utilizado foi a revisão bibliográfica considerando a própria característica breve deste artigo. Em sua composição, além dessa introdução, este texto se estrutura com uma seção que discorre sobre os fundamentos da Doutrina Militar de Defesa Cibernética e suas formas de atuação; uma seção seguinte, que trata das relações entre a política externa e integração regional do Brasil em assuntos de defesa cibernética e, por fim, as considerações finais.
O tema de defesa no Brasil tem como marco a criação da Política Nacional de Defesa (PND) e da Estratégia Nacional de Defesa (END), reunindo os instrumentos e formas de atuação voltados à Defesa Nacional. Segundo a própria apresentação da PND e da END, estes documentos “dentre outros aspectos, estabelecem os objetivos e as diretrizes para o preparo e o emprego das Forças Armadas em sua missão de defesa da pátria e de garantia dos poderes constitucionais” (BRASIL, 2012, p.7). Desta maneira, têm-se de forma organizada as diretrizes e bases para organização da Defesa Nacional, além da definição das áreas de importância para o tema, o que se mostra de alta importância para um melhor desempenho do cuidado da soberania nacional. Além da PND e da END, há também o Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN), criado em 2012 com intuito de apresentar o contexto da defesa nacional, assim como expor de forma mais transparente os números referentes à pasta do Ministério da Defesa e suas atuações (BRASIL, 2011). Entretanto, o LBDN – ao menos em sua edição de 2020 – não acrescenta muitas informações úteis ou pertinentes que estejam além da PND ou da END.
Se tratando de questões de defesa cibernética, o assunto é pouco citado nos referidos documentos ligados à defesa nacional. A exemplo, o LBDN somente comenta através de quatro brevíssimos parágrafos, temas relacionados à questão do espaço cibernético como uma forma de ameaça à soberania nacional, como o aumento da facilidade nas comunicações e o crescimento da potencialidade dos riscos de ataques cibernéticos (BRASIL, 2020, p. 15 e 23). Entretanto, não há aprofundamento algum, passando a impressão de que o tratar da questão é somente uma mera obrigação formal. Já a PND e a END – citadas como referenciais para o LBDN –, tratam de forma um pouco mais elaborada a questão cibernética, hierarquizando seu local de importância. Especificamente através da END, os mecanismos de atuação e as estratégias buscadas para seu alcance são melhor explicadas, pontuando que, as capacidades tecnológicas das Forças Armadas serão utilizadas de modo a fomentar e assegurar a capacidade da atuação em rede, estabelecendo também através de quais medidas estes objetivos pretendem ser alcançados (BRASIL, 2012). Além disso, tal entendimento também pode ser visto na fala de Oliveira e Portela (2017), ao destacarem que a END também discute a questão da soberania da produção de tecnologia nacional para o melhor desempenho da Defesa Cibernética: “A principal função da segurança cibernética é garantir a operação em rede das três forças, assegurando o princípio da flexibilidade, que para isso necessita de uma autonomia tecnológica.” (OLIVEIRA E PORTELA, 2017, p. 9).
Nesse contexto, entra em cena a Doutrina Militar de Defesa Cibernética, que, se tratando de um plano estruturado e específico para a questão, traz sobre como o tema é tratado no âmbito da Defesa brasileira. Já de início, a Doutrina demarca sua finalidade, demonstrando, assim, a importância que o tema ganha ao ser detalhado através dela: “Estabelecer os fundamentos da Doutrina Militar de Defesa Cibernética, proporcionando unidade de pensamento sobre o assunto, no âmbito do Ministério da Defesa (MD), e contribuindo para a atuação conjunta das Forças Armadas (FA) na defesa do Brasil no espaço cibernético.” (BRASIL, 2014, p. 13).
Fundamentos da doutrina e formas de atuação
Como fundamentos básicos, a Doutrina estabelece a separação das responsabilidades, estando a Presidência da República responsável pela Segurança Cibernética e o Ministério da Defesa, pela Defesa Cibernética. Partindo disso, subdivide os níveis de decisão que serão considerados para as ações no espaço cibernético, a saber: o nível político, nível estratégico e o nível operacional e tático (BRASIL, 2014), além de explicitar de forma detalhada os conceitos inerentes ao universo da defesa e segurança cibernéticas, formando uma base conceitual que não só se utiliza de tais conceitos do campo cibernético, como também usa como base o estabelecido na própria Doutrina Militar de Defesa. Através disso, foi criado um arcabouço teórico sólido e bastante detalhado para gestão dos assuntos do tema, observando-os com um olhar e entendimento de defesa e operações de guerra. Mesmo ainda soando como pontos distantes entre si, o espaço cibernético – intangível, não físico – e a guerra – presencial, de contato –, a realidade atual, após a popularização da internet, fez com que estes conceitos se encontrassem, muitas vezes de forma bastante rápida e com meios de atuação inesperados, o que torna a esta forma de enxergar a defesa cibernética como defesa de guerra uma escolha não só assertiva, como também necessária para corresponder às novas ameaças que se apresentam.
Nesse sentido, a Doutrina Militar de Defesa Cibernética se mostra bastante abrangente, considerando, semelhante às situações de guerra, concepções sobre quais os possíveis cenários de enfrentamento, assim como os atores, o aparato e a forma de atuação que deve ser empregada de acordo com o desdobramento de ameaças à segurança cibernética brasileiras. Ademais, é também deveras interessante o fato de que a própria Doutrina inclui como parte importante para esse esforço de defesa – ao tratar do “Sistema Militar de Defesa Cibernética”, em seu capítulo III –, a participação de setores não militares da sociedade, como a comunidade acadêmica, a sociedade civil e outras partes dos setores públicos e privados, além da base industrial de defesa, endossando ainda a cooperação e interação a nível internacional. Tal fato pode ser entendido justamente devido às próprias características do espaço cibernético, que trazem implicações e especificidades que escapariam à atuação única de órgãos militares, que podem, não muito dificilmente, precisar do auxílio desses outros setores sociais, sejam para construir formas de garantia e reforço da segurança e defesa cibernéticas, ou até mesmo em situações de ameaças, espraiando assim a concentração das possibilidades e formas de defesa, diferentemente dos contextos da guerra tradicional (VIANNA E CAMELO, 2020).
Além disso, há também exemplos onde acontecimentos da vida civil que influenciam ou mobilizam de alguma forma o aparato militar, mostrando que essas parcerias são bastante proveitosas, como se vê na fala de Santos (2019): “Na ocasião, o CDCiber atuou como ponto de contato unificado entre órgãos governamentais e empresas privadas no que tange à defesa cibernética do evento e do país. […] Inclusive, as diversas reuniões de coordenação com representantes da Marinha do Brasil, Exército Brasileiro, Força Aérea Brasileira, GSI/PR (CTIR.gov e ABIN), Serpro, DPF, Anatel, ANEEL, FURNAS, Usina Nuclear de Angra dos Reis, ANAC, entre outras agências, contribuíram para o estabelecimento da confiança mútua entre as diversas agências.” (SANTOS, 2019, p. 14-15).
Defesa cibernética, política externa brasileira e integração regional na matéria
Apesar de Defesa Cibernética se tratar de um tema delicado, com implicações que envolvem a salvaguarda da soberania e da segurança nacional, buscar formas de cooperação e intercâmbio no tema, visto que, tanto quando há interesses compartilhados, quanto em situações onde a troca de experiências pode ser úteis para os interesses individuais de países em cooperação, sem que haja prejuízo para nenhuma das partes, pode ser bastante proveitoso a todos.
Considerando este tipo de raciocínio, pontuam-se algumas ações que o Brasil empreendeu para a cooperação no tema, utilizando de suas relações externas com seus vizinhos sul-americanos para fomentar a cooperação no tema entre si, a nível regional. A exemplo disso, existe o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), que, no âmbito da UNASUL – criado em 2008, para pôr em consonância todos os arranjos existentes da região –, que mesmo não sendo uma aliança militar como a OTAN, abarca formas de cooperação e troca de experiências, estudos e informações sobre Defesa (UNASUL, CDS, 2008). Em 2015, a UNASUL reconhece como necessária a construção de conceitos comuns sobre a defesa cibernética na região sul-americana, iniciando diversos trabalhos e seminários sobre o tema, para que se construísse um arcabouço teórico consistente e pertinente às realidades da região e seus países componentes (OLIVEIRA et al, 2017).
Em suma, a decisão sobre a idealização de uma política ou doutrina de defesa cibernética é bastante particular a cada país, pois estenderá suas necessidades e peculiaridades, da forma que melhor lhe caiba executar. Então, segundo Oliveira et al (2017), as maneiras básicas, mas não únicas de estruturação, seriam: as que abordam processos, princípios e obrigações sobre o tema – como na Argentina –; as que focam somente na estrutura do sistema de defesa – como Chile e Venezuela – e as que têm foco em ambos os aspectos, como as legislações do Brasil e do Paraguai.
Para a Defesa Cibernética no contexto da UNASUL as tratativas se estabelecem no seio do CDS, com a confecção de planos periodicamente revisados referentes à matéria, que visam estabelecer ações de defesa regional (Gonçalves e Bragatti, 2018). Ademais, a cooperação sobre a temática na América do Sul ainda é incipiente, assim como os estudos voltados para defesa cibernética dentro do campo das Relações Internacionais, gerando diversas possibilidades de desdobramentos e questionamentos para estudos posteriores (OLIVEIRA et al, 2017).
Considerações finais
Em suma, foi possível compreender que a Doutrina Militar de Defesa Cibernética possui diversos elementos muito bem estruturados para uma boa condução das questões que concernem à matéria. O próprio formato e o pensamento voltado a entender que as ameaças cibernéticas devem ser tratadas como ameaças de guerra que comprometem a segurança nacional, já demonstra a importância adquirida pelo tema na última década, além da própria previsão do assunto tanto na PND quanto na END. Inclusive, em harmonia com a política externa brasileira que busca cooperação regional em questões de Defesa, inclusive cibernética, é possível concluir que o Brasil está, de certo modo, bem servido de instrumentos legais e políticas que incentivem a manutenção desse tipo de instrumento de Defesa.
Entretanto, outros diversos desdobramentos podem ser considerados com base no tema da Defesa cibernética. A título de exemplo: levando-se em conta as grandes transformações que a internet gerou no contexto mundial, em diversas áreas e a desconcentração das formas de defesa para várias esferas sociais além dos próprios órgãos militares, logo é plausível imaginar que essas novas relações podem levar a um rumo de repensar o que é e como acontece a própria guerra, assim como alguns conceitos de defesa e segurança.
Já sob outro ângulo, pode-se pensar sobre quais os novos alvos de ameaças e ataques, que deixam de ser somente o território e passam a ser diversas coisas como documentos oficiais, dados pessoais, informações secretas e etc., levando também a um outro rumo de indagação: seria a guerra cibernética uma forma de obter vantagens em caso de uma guerra convencional, ou ainda, seria uma nova extensão da guerra tradicional?
Não bastando os pontos acima, ainda se pode elucubrar que, em um contexto mundial onde as questões nucleares são tão presentes e influentes no Sistema Internacional e também muitas vezes os sistemas de defesa nuclear dependem de sistemas informatizados para seu funcionamento, os ataques cibernéticos poderiam ser uma forma de neutralizar a capacidade defensiva de um inimigo, ou ainda anular de alguma maneira a capacidade ofensiva dele? E mesmo assim, considerando relações assimétricas de poder, poderia um país menos influente e com menor poder militar, neutralizar as ações de um país melhor equipado? Assim, não é difícil imaginar que, neste novo cenário extremamente conectado, a fragilidade dos Estados se mostra muito maior do que antes, com a emergência de vários atores com poder equiparável, além da possibilidade de as ameaças partires de qualquer lugar, mesmo de um indivíduo ou pequeno grupo de indivíduos, não mais sendo necessárias enormes operações em teatros de guerra para que um conflito de sérias proporções se estabeleça. E, por último e não menos importante, as questões envolvendo segurança e defesa cibernética, do ponto de vista de criação e desenvolvimento de tecnologias, pode ser considerada ou equiparada à corrida nuclear do contexto pós Segunda Guerra e da Guerra Fria? Não caberia neste artigo responder tais proposições, mas ainda assim se fazem válidas à futuras pesquisas, em vista de desenvolver melhor o tema da Defesa Cibernética e seus desdobramentos.
Referências bibliográficas
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Séfora de Carvalho Pereira é graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense (UFF).