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img: Plarad Japan/CC BY

O conflito sino-americano no controle dos cabos submarinos

08/09/2024

Murilo Nazareth, Mestrando em Relações Internacionais (USP)

A revolução digital refere-se à transformação rápida e significativa que as tecnologias digitais estão causando em diversas áreas da sociedade, economia e cultura, tendo como ponto de partida a Automação e Inteligência Artificial (IA), Internet das Coisas (IoT), Blockchain e Criptomoedas, Economia Digital, Transformação Digital nas Empresas, Impacto Social e Cultural. Assim, a necessidade de garantir a confiança e a funcionalidade das novas tecnologias implica em investigar as dinâmicas políticas que envolvem a infraestrutura que possibilita esses avanços, especificamente os cabos submarinos. A internet não reside em “nuvens” ou depende de satélites em órbita. Na realidade, seu funcionamento e todas as comunicações digitais se baseiam em uma complexa rede de cabos submarinos de fibra óptica. Essa infraestrutura conecta países e continentes permitindo a instantaneidade na troca de informações, sendo composta de cerca de 1,4 milhão de quilômetros de cabos, responsável por transportar 99% do tráfego internacional de dados. 

Políticas chinesas em relação à infraestrutura de cabos submarinos

Como a intensificação da globalização a partir do século XX não pode ser desassociada do avanço tecnológico, a estrutura econômica da sociedade da informação na qual os dados digitalizados são essenciais em todas as relações sociais, reafirmam a importância dos cabos submarinos enquanto base para a interconectividade global. Na história chinesa, o processo de evolução da infraestrutura de cabos submarinos (ICS) é entendido em quatro estágios: fase inicial (1993-1998), fase de desenvolvimento (1999-2002), fase de estagnação (2003-2015) e fase acelerada (2016-2018). No primeiro a China tinha como objetivo se integrar na rede global de comunicação, assim, se concentrou em estabelecer conexões básicas e lançar as bases para o crescimento futuro. Embora a capacidade inicial fosse baixa, os avanços tecnológicos deram passos significativos, abrindo caminho para a expansão. A partir de 1999, a rede de cabos submarinos da China continental expandiu significativamente, impulsionada pela demanda global e inovações tecnológicas. Apesar da capacidade total ainda ser baixa, o crescimento exponencial indica uma base sólida para o futuro. Na terceira fase, a rede de cabos submarinos da China continental cresceu lentamente devido ao excesso de capacidade anterior, diminuindo a urgência de expansão, sendo marcada pela pouca expansão e menor ritmo de inovação tecnológica.

A fase de aceleração, a partir de 2016 teve como objetivo a renovação com substituição de cabos antigos e a aceleração com um aumento significativo da capacidade para atender às novas demandas do setor de TICs. Inaugurada em 2017 e prevista no 13º plano quinquenal chinês (2016 – 2020), a Rota da Seda Digital visa criar uma rede de cabos de fibra óptica terrestres e submarinos, satélites, e aumentar a cooperação em áreas como economia digital, inteligência artificial, nanotecnologia, computação quântica, big data, computação em nuvem e cidades inteligentes. Isto pois o rápido desenvolvimento da indústria de TIC tem apresentado uma tendência de crescimento exponencial, impulsionando o crescimento de dados que impõem maiores exigências para a construção de redes de cabos submarinos.

Os riscos para a soberania digital

Desde 2014 os discursos sobre soberania digital se acentuaram no contexto da governança global da internet, tendo a China como um dos principais países a reivindicar tal soberania por meio de discussões na World Internet Conference. Neste cenário, falando sobre a temática da ICS, considera-se a soberania digital como o controle de dados, softwares e hardwares, protocolos e padrões técnicos, serviços e infraestruturas. Assim, este entendimento abrange não só como os Estados abordam a própria soberania, mas a capacidade de infringirem a soberania de outros. Além disso, é possível enquadrar a infração da soberania digital a partir de outros atores como grandes empresas de tecnologia que podem controlar determinados setores ou processos, isto pois, no que diz respeito especificamente sobre a ICS,  em 2020, 59% dos proprietários são empresas privadas e este número tende a se manter ou crescer devido aos grandes investimentos de Google, Amazon, Meta e Huawei.

Marcados por uma complexa relação tanto entre países quanto entre países e empresas, os desafios que a ICS causa para a soberania digital se manifestam na capacidade de controlar a infraestrutura crítica tecnológica, bem como no tratamento de dados e no fornecimento de serviços dependentes da internet. Primeiro, a regulação da infraestrutura é afetada pela natureza transnacional dos cabos submarinos, esta regulação se refere à capacidade de determinado Estado influenciar na criação, destruição, desenvolvimento, operações, interações, verificações e correções de erros. Assim,  a definição de estruturas regulatórias, contratos e acordos de licenciamento e concessão constituem a definição de padrões de soberania digital.

Segundo, a segurança de dados está relacionada com a capacidade de determinado país em assegurar o controle dos próprios dados. Neste cenário, os países podem adotar medidas para alterar a estrutura externa e modo a direcionar um maior tráfego de dados para si, possibilitando maior coleta de dados. Isto pode ocorrer através da criação de pontos de conexão e/ ou aproximação com os proprietários e construtores dos cabos submarinos. De um modo geral, a natureza transnacional da Internet implica na variação de políticas nacionais que cada país considera mais adequado para si, pois a ICS depende tanto de cabos submarinos de propriedade estrangeira em territórios estrangeiros, quanto de águas internacionais para que se sustente enquanto uma rede segura de interconexões.

Por fim, os serviços dependentes da internet também são um risco devido à sua vulnerabilidade a potenciais danos nos cabos submarinos, de modo que caso o fluxo de dados nos cabos se torne lento ou interrompido, diversos setores críticos dos Estados serão afetados. Frente aos riscos à soberania digital, três estratégias poderiam ser adequadas para a mitigação: controles regulatórios, construção de cabos submarinos e proteções físicas. Por este motivo, chama-se à atenção a mudança de postura chinesa, principalmente com os investimentos após o início da Digital Silk Road

Relação sino-americana na disputa pelo controle da ICS

O caso do cabo SeaMeWe-6 é uma boa ilustração sobre a relação sino-americana caracterizada, atualmente, por uma disputa da infraestrutura de cabos submarinos. A empresa chinesa HMN Tech em 2020, foi selecionada para a construção do SeaMeWe-6 após conseguir um oferecer um valor ⅓ mais barato que o valor apresentado pela empresa estadunidense SubCom, devido aos subsídios que o Partido Comunista Chinês (PCC) concedeu. Entretanto, com a justificativa de uma potencial espionagem chinesa, o governo dos EUA promoveu uma campanha de transferência do contrato para a SubCom através de investimentos e pressões diplomáticas. Em fevereiro  de 2022 foi anunciado que o contrato seria realizado com a SubCom e que 20% seria direcionado a empresas chinesas, fazendo com que o PCC não aprovasse o envolvimento em um projeto cuja contratante principal é a SubCom. Já em junho de 2022 o governo dos EUA anunciou a parceria com a SubCom, assumindo que ajudou a garantir o contrato para a empresa.

O exemplo do cabo SeaMeWe-6 não é isolado, mas um projeto mais amplo estadunidense de frear o avanço chinês sobre as ICS, especialmente após o anúncio da Rota da Seda Digital. No ano de 2020 o governo estadunidense anunciou a iniciativa Clean Network que conforme consta nos arquivos do Departamento de Estado dos EUA: é a abordagem abrangente da Administração Trump para salvaguardar os ativos da nação, incluindo a privacidade dos cidadãos e as informações mais sensíveis das empresas, contra intrusões agressivas de atores malignos, como o Partido Comunista Chinês. Dentro deste projeto, existia algumas linhas de esforço que entre elas, destaca-se para o presente texto a linha “Clean Cables”, visando: “Garantir que os cabos submarinos que ligam o nosso país à Internet global não sejam subvertidos para recolha de informações pela RPC [República Popular da China] em hiperescala. Também trabalharemos com parceiros estrangeiros para garantir que os cabos submarinos em todo o mundo não sejam igualmente sujeitos a comprometimentos”.

No mesmo ano, o governo chinês anunciou a Global Initiative on Data Security, como uma possível resposta pela postura hostil estadunidense. Além disso, Zhao Lijian, atual vice-diretor do Departamento de Informação do Ministério de Relações Exteriores da China, declarou na época que o Clean Network não era um projeto que os EUA visavam uma rede limpa, e sim uma rede americana de vigilância com a finalidade de consolidar a hegemonia digital dos EUA. Assim como o Clean Network, devido à descentralização das políticas nacionais, quando alguns projetos são desenvolvidos, acabam sendo abandonados com pouco tempo de andamento. Neste sentido, o avanço chinês no controle da ICS é um processo de busca nacional por soberania digital que, concomitantemente, afeta as percepções de soberania estadunidense quanto à sabotagem e espionagem, além de impactos econômicos nas transações comerciais.

As preocupações quanto aos riscos para soberania digital que a ICS provoca direcionam para que o comportamento do governo dos EUA seja dividido em quatro tipos de resposta. A primeira é o isolacionismo que visa uma maior segurança de dados limitando a transmissão através de cabos vulneráveis, seja pela propriedade ou mal funcionamento. A segunda se trata de um maior estímulo para a cooperação internacional visando a proteção da ICS. A terceira é uma resposta competitiva visando o controle do mercado de bens e serviços com empresas estadunidenses, ou ao menos, diminuindo o impacto das concorrentes chinesas. Por último, a resposta militar, que se refere aos exercícios de inteligência e contra-inteligência e defesa contra espionagem ou sabotagem.O alto nível do acelerado crescimento chinês leva preocupação ao governo dos EUA em diversos setores da política doméstica e internacional, acentuado pelo processo de globalização com características chinesas, que reflete uma alternativa à estrutura política, econômica e financeira do sistema internacional. No que tange à infraestrutura de cabos submarinos é possível afirmar que existe uma disputa pelo controle, argumentando que os riscos para a soberania digital de cada país é o que fundamenta essa relação conflituosa. Desse modo, a expansão chinesa tem implicações substanciais nas dinâmicas de poder, desafiando a posição hegemônica dos interesses estadunidenses, de modo que a Rota da Seda Digital representa uma clara ameaça à hegemonia digital americana. Portanto, a disputa pela infraestrutura de cabos submarinos não é isolada, mas a manifestação de um processo mais amplo de reforma da ordem global, cujas relações têm consequências diretas no entendimento e proteção da soberania digital.