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Presença chinesa no setor de TICs no Brasil

img: ASPI

Rota da Seda Digital no Brasil

10/06/2024

Octávio Oliveira, Doutorando em Relações Internacionais (IRI/PUC-Rio)

Poucos temas tomaram espaço internacional nos últimos dez anos como o projeto chinês ‘Nova Rota da Seda’, também conhecida como a Iniciativa de Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative, BRI, na sigla em inglês), responsável por fornecer investimentos em infraestrutura para países em desenvolvimento. Em 2015, o componente digital do projeto, a chamada ‘Rota da Seda Digital’ (Digital Silk Road, DSR, na sigla em inglês) foi anunciada, sendo lançada oficialmente 2017. Neste sentido, este artigo apresenta assuas especificidades da iniciativa e seus possíveis reflexos no Brasil, país que não faz parte da própria BRI até o presente momento.  

Rota da Seda Digital: O que é, como surgiu, quem está envolvido?

Em um White Paper do governo chinês em 2015, bem como no 13º plano quinquenal chinês (2016 – 2020), o desejo de criar uma rota de cabos de fibra ótica que conectassem o entorno do país, se estendendo para a Eurásia e o mundo estava posto. Esta posição foi levada adiante pelo presidente Xi Jinping no Belt and Road Forum em 2017, ganhando subforums específicos para tratar temas de concernentes a infraestruturas digitais nos dois fóruns seguintes da BRI em 2019 e 2023, além de um subfórum no Fórum para Cooperação China-África (FOCAC). 

A iniciativa prevê a construção de cabos de fibra ótica terrestres e submarinos, links de satélite, além da intensificação da cooperação em áreas como economia digital, inteligência artificial, nanotecnologia, computação quântica, big data, computação em nuvem e cidades inteligentes. Até o momento, dos mais de 146 signatários da BRI, cerca de 30 países assinaram memorandos de entendimento (MoUs, na sigla em inglês) da Rota da Seda Digital, se tornando membros do braço digital da iniciativa chinesa.

Narrativas e oportunidades em torno do projeto

Alguns temas circundam as polêmicas em torno da DSR, sobretudo em termos de soberania digital em cibersegurança. Apoiadores da iniciativa chinesa apontam para o potencial diversificador e até mesmo contra-hegemônico dos projetos em infraestrutura digital chinesa, se tratando de um setor dominado quase que exclusivamente pelos EUA. Por outro lado, mesmo que imbricado em narrativas objetivamente estadunidenses e (ou) ocidentais, empresas chinesas têm de lidar com críticas acerca da segurança dos dados coletados por empresas como a Huawei e Hikvision, constantemente acusadas de espionagem

O caso brasileiro é sintomático da tensão envolvida nesta disputa. Embora o país não seja signatário da BRI – mesmo após 10 anos de existência -, tampouco da DSR, também não está alheio as oportunidades que os investimentos chineses representam no setor. Um universo de casos pode ser levado em consideração no que tange a infraestrutura digital, contudo, se observamos um dos seus componentes mais brutos, os cabos submarinos, podemos captar algumas das nuances em jogo. 

Assim como inúmeros outros países na América Latina, o Brasil possui uma grande dependência dos EUA no que concerne ao tráfego de dados. Em estudo recente, 84% dos caminhos das redes brasileiras de internet para os cem sites mais acessados do mundo passaram pelos EUA. Este é um dos cenários os quais a China tem contribuído, com a construção do ‘South Atlantic Inter Link’ (SAIL), cabo submarino transatlântico construído pela Huawei em 2018, conectando Brasil e Camarões, se tornando o primeiro cabo que conecta o Brasil diretamente através do atlântico sem atravessar os EUA. Diferente de narrativas em torno de uma possível nova dependência digital conquanto a China, no caso brasileiro, ela se torna mais um ator em meio a um rol de empresas do setor tech que diversificam a infraestrutura digital brasileira. A saber, outros dois cabos foram construídos conectando o Brasil a outros continentes sem a dependência dos EUA, como é o caso do South Atlantic Cable Systems (SACS), construído pela empresa japonesa NEC, e o EllaLink, conectando o Brasil a Portugal. O caso da Huawei com o SAIL é apenas um exemplo da ampla participação do país nas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) brasileiras, mesmo que o país não seja signatário da DSR.  

Empresas, projetos e atores

Utilizando dados do projeto ‘Mapping China’s Tech Giants‘ do Australian Strategic Policy Institute (ASPI), conseguimos mapear as principais infraestruturas de TICs chinesas no Brasil e no mundo, bem como as empresas envolvidas, subsetores, valores e demais especificidades. Segundo o banco de dados do projeto, desde 2003, cerca de 80 diferentes formas de infraestrutura digital e participação chinesa no setor de TICs foram computadas em solo brasileiro, desde data centers, subsidiárias e parcerias técnicas até acordos comerciais e cabos submarinos. A figura 1 mostra a distribuição espacial destes projetos no país, onde cada símbolo colorido representa uma diferente forma de participação no setor, incluindo o cabo submarino anteriormente mencionado, o SAIL. Em termos de empresas, Huawei, China Telecom, Dahua e ZTE estão entre as principais contratantes para os projetos no país. 

Os dados do banco mostram que, assim como inúmeros outros países na América Latina, África e até mesmo na Ásia, a assinatura de um MoU não é uma condicionante para a participação chinesa neste setor, mas sobretudo para firmar um compromisso político com a iniciativa da DSR especificamente. Esta zona cinzenta entre o desconhecimento das vantagens e riscos da iniciativa, o nível de prioridade das TICs em países em desenvolvimento, e a relativa autonomia em não ingressá-la, são refletidas no baixo número de MoUs assinados em comparação com a BRI até então. 

Figura 1 – Presença chinesa no setor de TICs no Brasil

Presença chinesa no setor de TICs no Brasil

A entrada do Brasil na Nova Rota da Seda (Digital)?

Embora não seja signatário da BRI, o Brasil possui acordos com a China no setor de TICs, sobretudo no atual governo, que firmou pelo menos sete acordos na visita do presidente Lula, em abril de 2023, à China, o maior número firmado neste setor por um mandatário brasileiro em visita de Estado ao país. Ainda assim, existem inúmeros acenos chineses para a possível entrada do Brasil no projeto, sendo o mais recente a proposta do ministro das relações exteriores chinês, Wang Yi, de unir os investimentos do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do atual governo brasileiro com a BRI.

No atual momento, no entanto, o projeto não é visto como um passo imprescindível para o fortalecimento das relações Brasil-China, que embora tenham passado por turbulências durante o governo Bolsonaro, ainda assim, foram fortalecidas no acumulado histórico do século XXI. A necessidade por certa autonomia na escolha dos projetos, a falta de percepção de vantagens claras na entrada do Brasil na BRI e um certo ceticismo acerca do projeto levam, desde o governo Temer, a uma visão da iniciativa como sobretudo ‘retórica’, sem trazer mudanças substanciais a uma relação prévia já consolidada.  

Se tratando de um setor tão sensível quanto o de TICs, o qual perpassou pela disputa em torno do 5G – vencido pela Huawei ainda no governo Bolsonaro, continuado no governo Lula – e agora se vê em meio a disputa sobre a regulação da internet, na figura do Projeto de Lei (PL) das Fake News, é difícil vislumbrar um cenário frutífero no curto prazo para a adesão brasileira a uma iniciativa de tamanha sensibilidade como a Rota da Seda Digital. Assim como a própria BRI, é necessário elevado nível de agência brasileira na proposta, pautando setores, empresas e somatizando o interesse de ambas as partes, as quais possuem modelos de governança de dados diametricamente díspares. Em meio aos acenos chineses e a demanda brasileira por TICs, se trata, desde o ponto de vista político, de um horizonte de oportunidades distante, porém decisivo para a diversificação de um setor cada vez mais estratégico para o Brasil.