Blog

img: Alan Santos/PR/CC BY

A importância da religião nas eleições presidenciais no Brasil

16/11/2022

Manoel Schlindwein, Doutorando em Relações Internacionais (IRI-USP)

Visitas a igrejas e templos, encontros com lideranças espirituais, demonstrações de fé e louvor e, sobretudo, propostas e declarações recheadas de valores morais, com forte conotação religiosa. Ao longo do pleito presidencial de 2022, os eleitores brasileiros testemunharam um grande e constante esforço dos candidatos em explicitar o quanto são homens e mulheres devotos e que prezam pela religiosidade, nos planos pessoal e coletivo – aliás, nada muito diferente do que se viu em eleições anteriores. Mas, desta vez, mesmo diante de urgências como o combate à fome e a retomada da economia depois da pandemia de coronavírus, o tema foi priorizado pelas candidaturas, definindo tanto as agendas de campanha como as estratégias de narrativa para convencer os eleitores indecisos. Ainda que tivessem visões de mundo e programas de governo muito distintos, os candidatos que disputaram o segundo turno – Jair Bolsonaro (PL), atual presidente e que então buscava a reeleição; e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ex-presidente entre 2003 e 2010 e que se sagrou vitorioso – tinham algo em comum: a preocupação em conquistar o voto dos fiéis. Para entender os motivos pelos quais as candidaturas dão tamanha importância ao tema é preciso levar em consideração não apenas o tamanho do eleitorado (que, por sinal, é bem expressivo), mas também os valores e modos de pensar da sociedade brasileira.

Em primeiro lugar, deve ser notado que a maioria dos brasileiros considera a religião algo de grande relevância numa eleição. Quase a metade da população (49%) disse dar muita importância para a religião ou a fé do candidato na hora de definir o voto, mostrou um levantamento do instituto Datafolha divulgado em meados de outubro, a quinze dias do segundo turno das eleições. A pesquisa ouviu eleitores de todo o país e revelou diversas características da população sobre o tema. Ao atribuir notas numa escala de relevância de 1 a 5, sendo 1 a nota mais baixa e 5 a mais alta, os eleitores de Bolsonaro deram mais importância à religião do que os petistas (4,2 a 3,3). Por sua vez, os eleitores com 60 anos ou mais superaram os jovens de 16 a 24 anos (3,9 a 3,3) no quesito e os moradores do Norte manifestaram maior interesse do que os do Sudeste (3,9 a 3,5).

Outro fator para entender porque os candidatos se ocupam tanto da religião durante as eleições, seja em discursos, reuniões de bastidores ou propagandas para rádio e TV, diz respeito ao número de adeptos no país. O Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010, último levantamento do governo federal a trazer uma radiografia da religiosidade brasileira, mostrou que 64,99% da população se declarou católica, enquanto 22,89% afirmou ser evangélica. Somados, correspondem a 87,88% da população. Na mesma pesquisa, apenas 8,04% da população disse não ter religião. O levantamento, previsto para ocorrer a cada dez anos, foi adiado de 2020 para 2021 por conta da pandemia e, depois, para 2022. O órgão enfrenta diversas dificuldades para realizar a pesquisa, desde a falta de pessoal até pesadas restrições orçamentárias. Assim, cabe considerar os números mais atuais, obtidos a partir de um levantamento do Datafolha realizado em dezembro de 2019. Segundo o instituto de pesquisas, 50% dos brasileiros são católicos, 31%, evangélicos, e 10% não têm religião.

Para além dos números, é preciso levar em consideração qual é a visão de mundo dos adeptos das diversas religiões no país. A fim de considerar apenas os grupos mais numerosos, católicos e evangélicos, embora moldados sob uma mesma perspectiva cristã, possuem visões distintas sobre a vida em sociedade – o que, na prática, faz com que tenham diferenças fundamentais sobre a elaboração e a condução das políticas públicas, particularmente aquelas que envolvem os costumes e a moral. Em um artigo de setembro deste ano, a professora Janice Theodoro da Silva, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), observa que católicos e evangélicos justificam, cada um a seu modo, “mais ou menos Estado, mais ou menos liberdade individual, mais livre-arbítrio e menos demonização do Outro”. Ela lembra que, apesar do Estado brasileiro ser laico, “parte significativa da população não separa o espaço privado, de suas convicções religiosas individuais, do espaço público, gerido pelo Estado”. A professora lembra que as práticas religiosas existentes nas sociedades interferem nas políticas públicas e que, no caso do Brasil, o Estado, ainda que laico,”enfrenta dificuldades para manter as fronteiras entre o público e o privado”. A fim de reforçar o ponto, a professora lembra que os evangélicos valorizam a prosperidade individual em detrimento de políticas estatais, ao passo que católicos não encontram o caminho da salvação no sucesso, dinheiro e poder.

Essas características, e suas respectivas implicações, foram realçadas em um artigo publicado no final de outubro pela escritora e editora do prêmio Empreendedor Social Eliane Trindade. Com o sugestivo título de “Fé e Brasil ficam na berlinda em meio à guerra espiritual e eleitoral“, a colunista do jornal Folha de S. Paulo argumenta que o presidente Jair Bolsonaro encampa a ideologia de um Brasil governado por Deus, em que há uma influência cristã em todas as esferas – o que, segundo uma ala progressista, estaria por ameaçar o Estado laico. Àquela altura, a dois dias da votação para o segundo turno, Trindade argumentava que a reeleição de Bolsonaro era “almejada por lideranças evangélicas conservadoras para coroar [um] projeto fundamentalista que prega um país governado por valores cristãos”. À frente da empreitada, “barões da fé” como os televangelistas Edir Macedo (Igreja Universal do Reino de Deus) e Silas Malafaia (Assembleia de Deus). Ela cita o teólogo Ronilso Pacheco, autor do livro “Ocupar, Resistir, Subverter: Igreja e Teologia em Tempos de Racismo, Violência e Opressão”. Diz ele: “Igrejas evangélicas com presença na mídia e influência política são parceiras do projeto ultraconservador do governo Bolsonaro, que nega direitos e explora a fé”. Em contrapartida, apontava Trindade, “a resistência vem de vozes progressistas de várias denominações em defesa de um estado laico”, como era então o caso do grupo “Fraternidade do Evangelho”, que emitiu nota em defesa da democracia constitucional.

Por sua vez, Magali Cunha, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser), traz as questões financeiras para o centro do debate. Segundo ela, o que estava em jogo nas eleições de 2022 não era a ideologia, “mas interesses corporativos de igrejas que lucraram muito com o governo Bolsonaro”, como foram os casos do perdão de dívidas e a própria presença de pastores nos ministérios da Educação e da Saúde, por exemplo. A novidade deste pleito seria, na visão da pesquisadora, a unidade de grupos evangélicos distintos para angariar poder político com o propósito de implantar no país a chamada Teologia do Domínio. Tal ideia, também conhecida como “dominionismo” ou, ainda, “reconstrucionismo”, advoga por um governo pautado por valores cristãos, teve origem nos Estados Unidos, foi de certo modo adotada pelo Partido Republicano e acabou sendo importada para o Brasil.  “A Teologia do Domínio tem uma abordagem pesada: é preciso tirar o diabo do poder. É preciso dominar o poder político fazendo com que os ungidos do Senhor tomem conta do poder político”, explica Pietro Nardella-Dellova, doutor em Ciência da Religião pela PUC/SP em um artigo do Congresso em Foco sobre o tema. Refletindo sobre o fato de que Jair Bolsonaro permitiu a grupos com esse alinhamento ocupassem espaço em seu governo, o doutor em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Joscimar Silva, em recente debate sobre o tema promovido pela Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais (Abrapel) disse que “os interesses religiosos sempre estiveram presentes na política … mas talvez nunca antes tenha sido ponto tão central do debate”. A presidente da Abrapel, Mara Telles, resume: “a pregação do ódio religioso torna-se, assim, o principal ingrediente da campanha eleitoral”.

Assim como em 2018 e 2020, as eleições deste ano foram marcadas pela disseminação de notícias falsas. Ao fazer um balanço do pleito, a Agência Lupa, especializada na checagem de fatos, escreveu que a presença inequívoca da desinformação faz com que a eleição de 2022 fique marcada, por muitos anos, como a mais polarizada do recente período democrático brasileiro. Segundo a agência, “não há dúvidas de que a disseminação de conteúdos falsos foi estratégia das mais relevantes no acirramento dos ânimos no debate político, desnudando um Brasil que resiste à informação verificada”. Não por coincidência, as redes sociais e os serviços de mensagens privadas como o WhatsApp foram inundados por conteúdos falsos ligados à religião. Fake news envolvendo temas relevantes na disputa do voto do público evangélico, como a legalização do aborto, o fechamento de igrejas e a adoção de banheiros unissex em escolas, circularam em abundância às vésperas das eleições. Boa parte das mensagens tinha Lula como alvo, o que levou sua candidatura a divulgar uma carta compromisso aos evangélicos para desmentir os conteúdos. O documento destaca ações de seu mandato, como a reforma do código civil assegurando a liberdade religiosa no país e os decretos que criaram a Marcha para Jesus e o Dia Nacional dos Evangélicos. Pelo que se vê, o tema seguirá relevante e longe de consensos por um bom tempo, ainda que boa parte dele deva ser regulamentado pelo Congresso Nacional e não pela Presidência da República.