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A construção da propaganda político-ideológica promovida pela direita brasileira acerca da imagem da Venezuela

08/11/2022

Stephanie Braun Clemente, Doutoranda em Relações Internacionais (UERJ)

A forma como utiliza-se de uma imagem negativa sobre a situação político-econômica-social da Venezuela, principalmente acerca dos governos de Nicolás Maduro, mas também sobre os antigos governos de Hugo Chávez, não é novidade. Diversos políticos ao redor do mundo – que por questões claramente ideológicas e se encontram no espectro da direita política – utilizam a Venezuela como um exemplo contraproducente do que “a esquerda representa” e de como a esquerda seria “perigosa”. 

Para exemplificar brevemente, em 2018, em eleições legislativas, a direita colombiana alarmava para o perigo de que o país pudesse seguir caminho semelhante a de seu vizinho e ser governada pelo que chamavam de “castrochavismo”, no caso da eleição de Gustavo Petro. No México, nesse mesmo ano, houve eleições presidenciais. Nessas, circularam até um vídeo falso no qual Maduro manifestava apoio ao candidato Andrés Manuel López Obrador (AMLO). Lá, desde 2006, circula a narrativa de que se AMLO saísse vitorioso, o México se tornaria um país parecido com a Venezuela de Chávez e de Maduro. O que se pretendia com essa campanha era “impedir que a preferência por ele avance em outros perfis eleitorais”.

No próprio Brasil, a Venezuela se tornou um assunto recorrente em todas as eleições desde quando o Partido dos Trabalhadores (PT) ascendeu ao governo federal em 2002. Isso se deu muito por conta da proximidade existente entre Lula da Silva e Hugo Chávez e, posteriormente, pela busca por manter boas relações com Maduro, a partir de 2013. Assim, “a Venezuela passou a ocupar o imaginário de determinados setores da sociedade brasileira”. Ou seja, a narrativa não começou a ser construída pelo candidato Jair Bolsonaro e por seus apoiadores. Entretanto, foi a partir de sua campanha que ela foi aprofundada e, até mesmo, se tornou viral nas redes sociais. 

Com isso, é em 2018 que tal explanação político-ideológica transfigurou-se de forma mais profunda e difundida, a partir da campanha do candidato Jair Bolsonaro para a presidência. Uma das características de tais eleições foi o amplo uso de redes sociais pelos candidatos como forma de fazer campanha e atingir mais eleitores. No WhatsApp, a propagação de mensagens tornou-se padronizada por formas de mobilizar a base eleitoral

Para além desses pontos, outro dos esforços bolsonaristas para chegar ao poder foi a propagação em massa de fake news, empregadas então como uma espécie de modus operandi que auxiliou para que Bolsonaro crescesse politicamente e fosse eleito para assumir o mandato de 2019 a 2022. Tais notícias falsas eram criadas acerca dos mais variados assuntos e pautas políticas e conseguiram convencer a base eleitoral existente e ampliá-la a partir de sua difusão.

Na campanha de 2022, este modo de operar não foi abandonado, tendo sido, na verdade aprofundado. Segundo o ministro Alexandre de Moraes, houve um aumento de “1.671% na divulgação de conteúdo considerado falso se comparado com a votação de 2020 e uma alta de 436% nos episódios de violência política via redes sociais em relação a 2018”. Por conta disto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem atuado de maneira intensa para retirar fake news do ar – principalmente nas campanhas para o segundo turno – o que tem gerado debates sobre tais ações serem uma espécie de censura e contra a liberdade de expressão. 

A narrativa sobre a Venezuela empregada pela direita brasileira

A maneira negativa usada para versar sobre a Venezuela foi amplificada a partir de 2018, como um exemplo de tudo o que o Brasil não queria se tornar, devido às crises pelas quais o vizinho passa. Para tanto, a escolha deveria ser pela eleição de um candidato de direita e que fosse um outsider na política, que não se enquadraria nas maneiras tradicionais de fazer política. 

Bolsonaro passou a se posicionar como o único político disputando o cargo da presidência que seria capaz de salvar a nação de todo o mal que o PT relegou ao país nos anos em que esteve no poder e àquele que poderia prevenir que o Brasil chegasse perto de passar pelas problemáticas pelas quais a Venezuela passava/passa. 

Tal propaganda político-ideológica não ficou restrita na campanha de 2018. Por mais que no primeiro turno para o pleito de 2022 essa narrativa tenha ficado um pouco de lado, tanto pelo candidato Bolsonaro quanto por seus apoiadores, no segundo turno observou-se uma mudança de tom. Falar sobre a Venezuela voltou a ser um tópico que mobilizou os bolsonaristas, bem como disseminar informações falsificadas acerca do país.

Um exemplo de fake news empregada para reforçar a narrativa existente, consiste em uma postagem circulada no Facebook, Instagram e WhatsApp, em que uma suposta reportagem do G1 (portal de notícias da Central Globo de Jornalismo), cujo título seria “Lula: a Venezuela não precisa de críticas do Presidente do Brasil e sim de financiamento e empréstimos”, divulgaria discurso do então candidato prestando apoio ao governo venezuelano. 

A propagação desta desinformação demonstra como os bolsonaristas estavam buscando, novamente, apelar para o medo de grande parte da população. Ameaçavam que se um governo de esquerda viesse a assumir o cargo do Poder Executivo, o Brasil iria passar pelas mesmas crises que a Venezuela passa, simplesmente pelo fato de que lá o governo em turno também é de esquerda e pela proximidade que apontam que Lula tem com o chavismo. Ademais, tal notícia também remete a um certo patriotismo, em que o povo deveria defender que recursos do Estado brasileiro – que saem de seus bolsos – sejam usados internamente e não empregados para auxiliar um governo que tanto abominam. 

Por que tal narrativa é equivocada?

A desinformação e até mesmo falta de interesse pela busca por conhecimento sobre o país acabam empobrecendo o debate sobre a Venezuela no Brasil. Portanto, é preciso desmistificar a narrativa empregada e reforçada ao longo desses anos. Nesse sentido, é importante elencar, brevemente, motivos que demonstram que tal narrativa é errônea e que, com a eleição do governo da coligação encabeçada pelo PT no país, que ocorreu no dia 30 de outubro, não corremos o risco de que o Brasil se torne algo parecido com seu vizinho ao norte. 

Fatores muito particulares da Venezuela e da conjuntura doméstica e internacional em que ela está inserida levaram ao cenário de crises que vemos hoje. A face da crise econômica venezuelana possui raízes bastante particulares. Sua economia rentista é extremamente dependente da exportação de petróleo. Por isso, os embargos e sanções que começaram a ser empregados pelos Estados Unidos (EUA) contra o governo de Nicolás Maduro, desde 2014, configuram um dos principais pontos para compreender a crise venezuelana atual. Por sua vez, o Brasil, mesmo nos anos de PT no poder, sempre manteve um bom relacionamento com os EUA. A política externa altiva e ativa valorizava o pragmatismo. O Estado hegemón não possuía o interesse de desestabilizar o governo em turno no Brasil. E, diferentemente da Venezuela, não temos a economia pautada em apenas uma atividade econômica.

De mais a mais, não há indícios de que passaremos por uma crise institucional como a venezuelana. Lá, o fato de a oposição ter conquistado a maior parte das cadeiras na Assembleia Nacional em 2015 e ter tentado abrir um processo de impeachment contra Maduro, conferiu o pontapé inicial para que a crise nessa instância se iniciasse. Em 2017, Maduro e seus aliados convocaram eleições para a formação de uma Assembleia Nacional Constituinte (ANC). A oposição optou por não participar dessas eleições. Como consequência a ANC acabou sendo dominada por apoiadores do governo, deixando o país com duas frentes legislativas. Esse cenário caótico abriu margem para o surgimento da figura de Juán Guaidó como presidente interino. O saldo foi que o país passou a ter duas Assembleias e dois presidentes. 

Em termos da crise política, que somente se aprofunda no país, a oposição venezuelana começou a se fragmentar cada vez mais desde 2013. Já nas eleições para presidente em 2013, os grupos opositores argumentavam que o resultado foi fraudado. Essa passa a ser linha condutora a cada eleição em que as forças do governo saíam vitoriosas e, como uma forma de protesto – que claramente não tem funcionado – passam a boicotar os pleitos ao não participar deles. Além de enfraquecer sua capilaridade, acabou por segmentar os grupos opositores, de forma a não haver atualmente uma força centralizada e capaz de fazer frente ao governo.

Tendo visto isto, conclui-se que, ao longo dos governos anteriores do PT, o Brasil não esteve nem perto de passar por uma revolução socialista ou comunista. Por mais que o partido se coloque como uma força de esquerda, os anos do PT no poder se enquadram melhor como uma social-democracia. Desde 2003, Lula teve que conversar e governar junto de empresários, elites privilegiadas e com partidos que compunham a oposição, além de implementar medidas neoliberais na economia. Em seu próximo mandato, percebe-se que um governo totalmente de esquerda não será concretizado novamente. Afinal, a maior parte das cadeiras da Câmara e Senado foram dominadas por políticos do PL e de partidos do centrão.