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Conservadorismo brasileiro: a ordem antes do progresso
17/03/2023
Jéssica da Silva Duarte, Doutora em Ciência Política (UFRGS)
O recente avanço do conservadorismo no Brasil precedido de protestos que demandavam por pautas antissistema e até mesmo antipolítica, pode fazer parecer que há um grande ineditismo ou até mesmo uma ruptura política. Contudo, se olharmos atentamente para a história política do país e, mais especialmente, para a trajetória do conservadorismo brasileiro, poderemos notar muito claramente um padrão de recorrência e questionar o real caráter dessas rupturas. Afinal de contas, a bandeira nacional é clara quando afirma: ordem (antes) e progresso (depois).
Antes de uma caracterização mais detalhada e cronológica, pode-se afirmar que o conservadorismo brasileiro passa por quatro pontos chave: a colonização luso-espanhola, a monarquia portuguesa, o direito romano e o positivismo. Além disso, outro ponto prévio fundamental para pensarmos o conservadorismo brasileiro é observar o perfil político e cultural que dita os mecanismos do poder no país. De forma sintética, o Brasil pode ser definido politicamente pelos seguintes aspectos: personalismo, ceticismo em relação à política, herança cultural colonial, moral religiosa católica e patrimonialismo. Essas características se misturam ao longo da história do país. Por outro ângulo, a instabilidade e as periódicas rupturas são fenômenos praticamente orgânicos da política brasileira. Naturalmente, à priori, conservadores não são simpáticos a tanta insegurança e transformação.
Contudo, e se os conservadores forem parte atuante ou motor dessas rupturas? O conservadorismo brasileiro pode ser paradoxal a ponto de provocar demandas antissistêmicas sem deixar de ser conservador, como vimos nos protestos iniciados em julho de 2013? Para responder a essas (e outras) perguntas, se exige vislumbrar o pensamento/movimento conservador brasileiro em sua completude. Precisamos fazer uma digressão ao início do conservadorismo no país — que, não por acaso, coincide com a chegada dos portugueses a esta terra.
Possivelmente, José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, foi o primeiro pensador e disseminador do conservadorismo no país. Trazido ao Brasil juntamente com a corte política portuguesa, o Visconde traduziu autores clássicos do conservadorismo político e liberalismo econômico, entre eles Edmund Burke. Juntamente com uma corte política notadamente conservadora, a colonização de Portugal trouxe a religiosidade católica, a estrutura hierárquica e tradicional da monarquia. A combinação entre a política monárquica e fundação de uma nação culminou na perseguição quase obsessiva pela manutenção da ordem, centralização do poder e unitarismo. Todos esses aspectos estão claramente colocados e resumidos na primeira regulamentação legal do país, a Constituição de 1824.
Esse modelo, passando pelo poder moderador, o período regencial, os regressistas, os saquaremas até o Segundo Reinado, se perpetuou — com pequenas reformas (um clássico do conservadorismo) — ao menos até a Proclamação da República em 1889. De fato, esse marco representou uma cisão na estrutura de poder do país, substituindo parte da simbologia que fundou a pátria, tais como: a bandeira, o hino nacional e a própria monarquia. No entanto, ocorre nesse exato momento o primeiro paradoxo dos conservadores brasileiros: a “transição” entre regimes ocorre por meio de um golpe de Estado político-militar pela primeira vez. Isto é, a instituição mais conservadora do país, o Exército, assume as rédeas da nação a partir de uma ruptura, mas seguindo rigorosamente um conjunto de princípios conservadores na forma de conduzir o povo.
Passando brevemente pelas primeiras décadas do período republicano brasileiro, escolho duas observações chaves para dar continuidade a esse “passeio” pela história do conservadorismo brasileiro. Começando pelo desafio que pensadores conservadores tiveram ao precisar justificar ou legitimar o passado e as tradições que eram notadamente resultado da colonização. Como exaltar um legado colonizador?
Para tanto, o conservadorismo encontra abrigo na argumentação de que todo o processo monárquico foi algo natural, orgânico e gradual, no qual os colonizadores portugueses precisaram manter a centralização e a tradição para garantir a unificação e criação de uma nova nação. Por outro lado, a discussão acerca da necessidade de unificação da monarquia até a república é colocada em tom moderado visualizando a história do Brasil por um viés reformador e cauteloso, sem deixar de considerar como uma ameaça a suposta substituição de uma organização comunitária por uma mais individualista. Por fim, para dar o tom de maior racionalidade e sistematização ao pensamento conservador e militar no Brasil, o positivismo justifica a importância da manutenção da ordem e do status quo.
A segunda observação diz respeito ao Estado Novo, uma nova ruptura — dessa vez com a “República Velha”, mas que de realmente novo talvez tivesse pouco. Mais uma vez, o país se depara com o golpe de Estado, dessa vez dado por Getúlio Vargas, que podia não ser um conservador strictu sensu, ao combinar autoritarismo, populismo e trabalhismo, mas que instrumentalizada uma quantidade significativa de princípios conservadores, entre eles: a centralização do poder e o nacionalismo. Dito isso, vamos analisar a maior ruptura seguinte: o golpe/regime militar estabelecido entre os anos de 1964 a 1988. Em um contexto de Guerra Fria e combate à “ameaça comunista”, a política de segurança nacional conservadora norte-americana é importada para o Brasil. Nesse período político do país, o conservadorismo está no palco outra vez por meio da hierarquia, da obsessão pela ordem, da centralização do poder, da regulação social, da filosofia positivista e da moral tradicional.
Após esse período, a redemocratização do país pode parecer uma ruptura mais progressista, e talvez até seja. Mas não deixemos de olhar as entrelinhas. A transição é vastamente conhecida pelo lema: lenta, gradual e pactuada; essa frase poderia facilmente representar o modus operandi do conservadorismo em síntese. Além disso, o primeiro grupo político a assumir o poder no novo período democrático brasileiro é formado essencialmente por políticos que pertenciam à Arena, o partido do regime militar.
As primeiras décadas da jovem democracia brasileira talvez sejam a novidade genuína de toda essa história. Nesse período houve avanços políticos das pautas sociais e progressistas. Mas onde foram parar os conservadores? Como bons representantes de sua ideologia política, eles permaneceram lá o tempo todo, talvez um pouco envergonhados, mas atuantes. Eles estiveram pela oposição, no crescimento das igrejas neopentecostais e na formação de think tanks. Neste contexto, em 2013: um contexto de instabilidade, ruptura e demandas antissistêmicas, o conservadorismo brasileiro encontrou espaço mais uma vez. Nos protestos iniciados em julho do referido ano, voltam às ruas: o verde e amarelo, o golpismo, a moral comunitarista e religiosa, o positivismo e a luta contra o comunismo. Logo, temos a instabilidade e a ruptura outra vez, nada novo no front.
Sinto em concluir que a onda conservadora que pegou tantos de surpresa (talvez por pura desatenção ou ingenuidade) e pareceu tão inédita seja apenas mais um capítulo do funcionamento sistêmico da política e do conservadorismo brasileiro. Apesar de já termos dito quase tudo, cabe agora, finalmente, olhar com clareza para o avanço conservador atual.
Contudo, antes de chegarmos ao Bolsonaro em si, olhemos o bolsonarismo. É factual e inevitável salientar o crescimento das bancadas religiosa, de segurança pública e ruralista no Congresso Nacional. Com esses novos representantes temos em destaque pautas e discursos sobre o conteúdo ensinado nas escola, revisão ou reforma dos formatos de políticas assistenciais, a adoção de critérios cristãos para pautar a política e o comportamento, a redução da maioridade penal, a adoção do voto impresso e a liberação do uso de armas.
Jair Messias Bolsonaro reuniu em 2018 a receita ideal para a eleição e personificação do conservadorismo no Brasil: um cenário de instabilidade, demandas antissistema, coalizão entre as elites econômica e política em prol de políticas liberais para a economia e conservadoras em todos os outros aspectos. Seu grupo político manteve o controle da narrativa conservadora por meio de ferramentas modernas ou reinventadas em um mundo digital, a pós-verdade, a desinformação, o populismo e a simplificação dos problemas sociais e políticos.
Passando por uma série de percalços não tão auspiciosos quanto a sua eleição e o início de seu governo, Bolsonaro chega às eleições de 2022 como um provável derrotado. Contudo, mesmo após crise sanitária, econômica e sucessivos escândalos de corrupção, o então incumbente vai ao segundo turno e arrebata 49% dos votos válidos. Considerando tudo que refletimos até aqui e até mesmo o resultado das eleições, eu encerro com a seguinte pergunta retórica: vocês realmente acham que o conservadorismo está derrotado no Brasil?