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O ataque às pesquisas de intenção de voto: um caminho para a contestação das eleições

21/10/2022

Giovanna Macieira Rosario, Mestranda em Relações Internacionais (IRI-USP)

Ainda que não pairasse sobre o país a sombra de uma ameaça ao processo eleitoral, a eleição presidencial de 2022 ainda assim seria a eleição mais decisiva da história do Brasil. Isso porque não se trata de uma eleição que consiste na escolha entre dois programas de governo, mas sim de um referendo sobre as intenções autoritárias do atual presidente Jair Messias Bolsonaro.

Contudo, o fato de existir uma campanha de desinformação que objetiva colocar sob questão a integridade do processo eleitoral faz da atual eleição, um cenário particularmente alarmante. É como se existissem dois confrontos: um no âmbito eleitoral, entre o atual presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula; e outro que acontece à margem da legalidade, entre Bolsonaro e as instituições democráticas.

A cruzada contra as pesquisas eleitorais
Em relação ao primeiro confronto, praticamente todas as pesquisas eleitorais realizadas por institutos reputados indicaram e continuam indicando que Bolsonaro se encontra em posição de desvantagem em relação ao ex-presidente Lula. Mesmo após a aprovação, em Julho, de uma PEC (proposta de emenda à Constituição) que possibilita a distribuição de benefícios bilionários à população, as pesquisas continuaram a revelar a incapacidade de Bolsonaro em converter as benesses em intenções de voto.

Aliás, a criação de benefícios sociais em ano eleitoral, além de constituir ato flagrante de populismo fiscal, uma vez que a PEC possibilita a distribuição de dinheiro à população a três meses da eleição, é também inconstitucional ao afetar a “paridade de armas entre os candidatos”. Todavia, a medida não parece ter surtido o efeito esperado, não tendo sido capaz de reverter o cenário de liderança de Lula nas intenções de voto. Afinal, para que a distribuição de benefícios sociais se traduza em intenções de voto, os grupos afetados não podem compreender tal medida como uma simples jogada eleitoral, é preciso que a percebam como legítima demonstração de reconhecimento de suas dificuldades. Ao que as pesquisas indicam, esse não parece ter sido o caso.

No entanto, segundo o presidente, são tendenciosas as pesquisas estatísticas realizadas por institutos sérios, como Datafolha, Quaest e IPEC, e que encontram resultados bastante semelhantes, mesmo ao fazer uso de metodologias e formas de abordagem do eleitor distintas. Apenas as ruas, segundo Bolsonaro, são capazes de medir a vontade popular e, sendo assim, seria ele o único candidato viável; como se eleições fossem resolvidas no grito e não no voto.

É evidente que pesquisas eleitorais não antecipam o resultado das eleições. Afinal, a intenção de voto não se traduz automaticamente em voto. O nível de abstenção, por exemplo, que não é um dado capturado pelas pesquisas, é uma variável fundamental para resultado de uma eleição. Nos Estados Unidos, onde o voto não é obrigatório, o elevado nível de participação do eleitor na eleição presidencial de 2020 – o maior desde 1992 – exerceu um papel importante nos resultados.

No Brasil, apesar do voto ser obrigatório, a taxa de abstenção ainda assim tende a ser uma variável essencial para o resultado. Em 2018, a taxa foi de 20,3% no primeiro turno. Neste ano, 20,9% do eleitorado apto a votar não compareceu às urnas no dia 2 de outubro. Historicamente, a taxa de abstenção tende a aumentar no segundo turno, o que dificulta ainda mais o nível de precisão das pesquisas realizadas.

No entanto, o nível de abstenção não incide de maneira homogênea sobre todo o eleitorado brasileiro e, em função disso, é capaz de alterar o resultado que seria obtido caso todos os cidadãos aptos a votar comparecessem às urnas. Os eleitores de baixa renda e menor nível de escolaridade enfrentam maiores dificuldades para exercer o direito ao voto e tendem a comparecer menos às urnas. O candidato Lula possui ampla vantagem nessa faixa do eleitorado e, portanto, pode ser mais negativamente afetado diante de uma alta taxa de abstenção.

Contudo, para o bolsonarismo, cálculos estatísticos pouco importam. Aliás, o ataque generalizado à imprensa e à ciência, característica essencial do populismo, convém de maneira sublime para a desqualificação dos institutos de pesquisa. A retórica bolsonarista e a retórica populista de maneira geral já se encarregaram há tempos da deslegitimação dos mensageiros de críticas, como imprensa ou intelectuais, e dos portadores de más notícias, como os institutos de pesquisa. O ataque criminoso aos pesquisadores, que têm sofrido inclusive agressões verbais e físicas enquanto exercem seu trabalho, é apenas resultado de uma estratégia de antagonização que visa não somente os críticos, mas todos aqueles que não se juntam ao coro bolsonarista, apelidado de Datapovo, em referência ao Datafolha, instituto de pesquisa do Grupo Folha que, assim como todos os outros institutos, revela a liderança de Lula nas intenções de voto.

O caminho para a contestação das eleições
A retórica de desqualificação das pesquisas eleitorais faz parte da estratégia bolsonarista no seu confronto com as instituições democráticas, aquele confronto que, conforme elaborado no início deste texto, ocorre simultaneamente às eleições presidenciais. A disseminação de desconfiança em relação aos institutos de pesquisa eleitoral, que seriam supostamente “controlados pela esquerda”, faz-se necessária quando o objetivo é convencer o próprio público de que o sistema eleitoral é manipulado para fazer com que Bolsonaro perca.

Qualquer indício de que a vontade da maioria seja a saída de Bolsonaro do poder precisa ser combatido a fim de convencer seus apoiadores de que o presidente é vítima de uma grande conspiração cujo objetivo é impedir que a “vontade geral” prevaleça. Essa narrativa não é de todo uma concepção bolsonarista, Trump fez o mesmo em 2020, desacreditando o sistema eleitoral americano de modo a possibilitar a invasão do Capitólio no dia da ratificação da vitória de seu oponente. Bolsonaro pretende fazer igual. Afinal, se foi possível que isso acontecesse nos Estado Unidos, por que haveria de não acontecer no Brasil, cujas instituições democráticas são consideravelmente menos sólidas?

Bolsonaro já deixou claro inúmeras vezes que não pretende deixar o poder por meio de eleições realizadas através da urna eletrônica. No Brasil, a última eleição com voto de papel foi em 1994, sendo o sistema eletrônico comprovadamente seguro e eficiente. Contudo, a descrença no sistema eleitoral tem sido difundida por Bolsonaro desde 2018, ano no qual foi eleito por esse mesmo sistema.

Ora, se o objetivo é questionar a lisura das eleições a fim de não aceitar uma eventual derrota, é preciso questionar também todas as pesquisas que apontam a probabilidade de tal derrota. É conveniente que o termômetro das eleições sejam, não as urnas, mas as ruas, que são majoritariamente ocupadas bolsonaristas, reunidos pelo presidente a fim de viabilizar uma demonstração de força que garantiria ao menos uma impressão de razoabilidade caso ele venha questionar o resultado final da eleição presidencial.

É diante desse cenário que o líder do governo Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros, elaborou uma proposta de lei cujo objetivo consiste em criminalizar institutos de pesquisas que “erram demasiadamente”. Ignorando que as pesquisas não pretendem antecipar o resultado eleitoral, mas sim compreender o equilíbrio de forças que prevalece no momento em que é realizada, o texto busca punir responsáveis por pesquisas publicadas nos quinze dias que antecedem as eleições que divergirem,além da margem de erro declarada, do resultado oficial das urnas.

O texto de Barros prevê pena de prisão de quatro a dez anos para o estatístico e o representante do instituto que publicar, nos quinze dias que antecedem o pleito, uma pesquisa que não condiz com o resultado da eleição. Ou seja, parte-se do pressuposto que todos os eleitores irão às urnas e que nenhum deles mudará de voto durante quinze dias.

A proposta dificilmente será aprovada pelo Congresso antes do segundo turno, contudo, o objetivo principal não é realmente executá-la, mas sim gerar desconfiança em relação às pesquisas. Somente dessa forma, o presidente poderá se agarrar ao questionamento de um possível resultado desfavorável.