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Perspectivas para a política externa do governo Lula em âmbito regional
10/02/2023
Stephanie Braun Clemente, Doutoranda em Relações Internacionais (UERJ)
A política externa é uma das políticas públicas que mais receberam atenção nas administrações anteriores em que Luis Inácio Lula da Silva esteve no comando do Poder Executivo do país (2003-2011). A dupla Lula e Celso Amorim – prestigiado ex-chanceler do Brasil – performaram o que a literatura chama de foreign policy executive, que permitiu o estabelecimento de contatos relevantes ao redor do mundo, rumo a melhor consecução dos interesses nacionais brasileiros, por meio da denominada política externa ativa e altiva.
A narrativa de tal política foi construída e conduzida a partir da interpretação positiva que os policy makers possuíam acerca dos ativos do Estado brasileiro. Sendo assim, tais governos foram marcados por maior participação e atividade em fóruns multilaterais, nas relações bilaterais – tanto regionais quanto extrarregionais –, pela busca por canais de cooperação internacional e pelo posicionamento acerca de agendas e temas mais diversificados nas discussões internacionais, como na saúde pública internacional. Com isso, o país criou expectativas em pares internacionais e teve sua visibilidade incrementada.
Em âmbito regional, o Brasil desempenhou o papel de líder, tendo sido a América do Sul uma das áreas prioritárias da política externa brasileira (PEB). Nesse âmbito, o cultivo de bons relacionamentos foi priorizado – inclusive com líderes e países mais à esquerda, o que causou polêmica domesticamente, como com Hugo Chávez, ex-presidente da Venezuela. Ademais, o país foi um importante mediador em crises regionais, como nos casos da Venezuela (2002), Bolívia (2003 e 2006), Equador (2004), Honduras (2009) e Haiti (2003). E, claro, não se pode deixar de citar a participação em fóruns regionais que foram de suma importância para a proeminência internacional brasileira, como no Mercado Comum do Sul (Mercosul), na União dos Estados Sul-Americanos (Unasul), no Conselho de Defesa Sul-Americano e na Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).
No entanto, passado o período de Lula na presidência, a política externa tornou-se mais tímida e, mesmo nos governos de Dilma Rousseff (2011-2016), a ênfase que era dada em sua execução já não foi mais a mesma. Houve um arrefecimento no ativismo internacional. Desde então, a atividade e altividade, outrora reconhecidas internacionalmente, já pareciam ser uma meta deixada de lado, o que se mostrou cada vez mais a realidade nas administrações de Michel Temer (2016-2019) e de Jair Bolsonaro (2019-2022). O governo de Bolsonaro possuiu como uma de suas características o fato de que as credenciais internacionais reconhecidas do país – como o multilateralismo – não foram mais perseguidas. Em resumo, em diversos momentos da PEB de Bolsonaro, a ideologia pesou mais do que o pragmatismo, relacionamentos internacionais foram prejudicados e o prestígio internacional do país foi posto em descrédito.
Assim sendo, por mais que grupos internos do Itamaraty tenham formado uma rede de resistência clandestina com vistas a tentar travar as decisões nocivas que estavam sendo tomadas durante o período, os chanceleres Ernesto Araújo e Carlos França lograram objetivos perseguidos pela ideologia bolsonarista, implementando uma política externa de governo e não de Estado. O objetivo era satisfazer desígnios da extrema direita, o que culminou em uma PEB que prejudicou a diplomacia e a imagem histórica do Brasil no mundo, conformando-o em um pária internacional. Entretanto, se não fosse a atuação de tal rede, que buscava permitir que o outro país tivesse tempo para reagir a ataques ao relacionamento bilateral e preservar a credibilidade do Brasil no exterior, os danos, provavelmente, teriam sido maiores.
Diante de tal cenário, as expectativas de grande parte da comunidade acadêmica é de que o que foi feito possa ser revertido em alguma medida com o retorno de Lula ao posto de presidente em 2023. É preciso salientar que os contextos doméstico e internacional não são mais os mesmos daqueles com os quais a antiga administração se deparou. Todavia, o novo governo, mesmo antes de assumir oficialmente, já havia estabelecido contatos com chefes de Estado e governos ao redor do mundo, além de já ter começado a demonstrar a proeminência do país em agendas importantes para a nova era, como a agenda ambiental.
A posse foi avistada como um evento importante para o Brasil e marcante para a região. Diversos líderes internacionais participaram de tal momento. As cenas de Lula recebendo líderes de outras nações foi algo inesquecível para atores políticos e para os brasileiros como um todo. 73 delações estrangeiras estiveram presentes em tal momento icônico. A América do Sul esteve presente em peso: Chile, Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Suriname, Guiana e Uruguai mostraram pessoalmente o apoio ao novo governo. O fato é que Lula é visto com bons olhos e respeito por seus pares regionais, tanto pelos mais progressistas quanto pelos representantes da onda liberal-conservadora que imperou no continente entre 2015-2019.
Por mais que a delação da Venezuela não tenha comparecido na posse, um reestabelecimento de relações histórico, sem dúvidas, é o que se está desenhando com o governo de Nicolás Maduro. Jorge Arreaza, ministro da indústria da Venezuela, comentou que já era esperado que a retomada do relacionamento acontecesse caso Lula fosse eleito presidente, “tudo voltará ao que sempre devia ser“, declarou. As relações diplomáticas entre esses dois Estados sul-americanos, historicamente, é relevante para ambos e foi uma das mais abaladas durante a administração bolsonarista.
Para além da posse, análises apontam que no próximo governo Lula, a margem para a liderança do Brasil na região da América do Sul será reduzida se comparada ao papel que o país desempenhou nas antigas administrações, de 2003 a 2010, que se deram no período da onda rosa. Isso se deve ao fato de que os contextos doméstico e internacional para o desfecho de tal política são diferentes. No tabuleiro doméstico, o congresso de maioria opositora e uma economia em crise representam os desafios que se avistam; ao passo que, no tabuleiro internacional, vivenciamos uma guerra na Europa, tensões entre a China e os Estados Unidos, além de uma crise econômica global.
Ademais, a herança deixada por Bolsonaro para Lula em termos de política externa regional é dura e difícil de ser plenamente apagada, mas há a expectativa de que, ao menos em partes, isso seja revertido. Assim sendo, espera-se que algumas linhas mestras conduzam a atuação internacional a partir de 2023, como, por exemplo: o reposicionamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como instrumento de política externa, o fortalecimento do Mercosul e da Celac, a reconstrução da Unasul, a retomada das negociações da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), dentre outras.
De tal maneira, o trio que assumirá a condução mestra da política externa em 2023 (Lula, com sua diplomacia presidencial, Amorim na Secretaria de Assuntos Estratégicos e Mauro Vieira como chanceler) encarará o desafio de reposicionar o país nos cenários internacional e regional. Com isto, agendas importantes devem regressar ao centro da PEB, como a ambiental e a de direitos humanos. O governo Lula reconhece a importância da preservação da maior biodiversidade do planeta e, portanto, buscará romper o ciclo de destruição promovido pela administração bolsonarista. No discurso proferido pelo presidente no dia que foi eleito isso já apareceu como um dos focos que serão dados: “o Brasil está pronto para retomar o protagonismo na luta contra a crise climática”. Buscar-se-á preservar o meio ambiente e a vida em plenitude dos povos originários. A primeira medida tomada nessa direção foi a criação do Ministério dos Povos Originários, inédito no país, que será conduzido por Sônia Guajajara. Além disso, o governo assegura garantir desmatamento zero na Amazônia, emissão zero de gases do efeito estufa na matriz elétrica e agricultura de baixo carbono e familiar.
A respeito da agenda de direitos humanos, tem-se que Lula foi um dos mandatários que mais se atentou com tal temática. A política externa de direitos humanos em suas antigas administrações foi marcada por três princípios: o multilateralismo, o pacifismo e o globalismo, que são valores que demonstram a promoção dos direitos humanos, o que se deu tanto interna quanto externamente. Ao analisar seus governos anteriores, percebe-se a significativa melhora que foi promovida na qualidade de vida da população, principalmente a partir de programas sociais como o Fome Zero e o Bolsa Família – notabilizados internacionalmente -. Com isso, Lula e aqueles que trabalharão com o presidente deverão retomar temas-chave de direitos humanos que foram abandonados da esfera pública nos últimos anos, como a defesa dos direitos das mulheres, dos LGBTQIA+s, dos negros, das crianças e dos adolescentes, quilombolas e dos povos originários e proteção das pessoas com deficiência. Nesse sentido, espera-se a criação de secretarias especiais – com status de ministérios – para cada uma dessas áreas.
Visto isto, a expectativa é de que o país regresse à cena internacional, retomando seu prestígio e reconhecimento por pares importantes. Para tanto, a atuação com maior ênfase na região e em áreas temáticas relevantes para a política externa serão caminhos determinantes para chegarmos ao destino final, qual seja, o de deixar no passado a marca de pária internacional do Brasil. Por mais que o desfecho provavelmente não vá ser o mesmo do que as administrações Lula anteriores lograram, o novo governo representa a melhor esperança que temos nesse sentido no momento. E os contatos que Lula já tem reestabelecido, por meio da atuação em sua diplomacia presidencial – são os casos das recentes viagens ao Uruguai, Argentina, as paradas que fará na Europa, Estados Unidos e China – indicam que a imagem do país poderá sim ser recuperada, ainda que aos poucos.