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A maré conservadora no Brasil e no mundo
16/11/2022
Jéssica da Silva Duarte, Doutora em Ciência Política (UFRGS)
O Brasil é um país tropical e litorâneo, logo é de se esperar que as marés sejam intensas e marcadas por oscilações periódicas. Contudo, esse mesmo movimento tem ocorrido ao redor do mundo, chegando até mesmo em locais supostamente mais estáveis, como o Reino Unido. A chamada “onda conservadora” atingiu fortemente a política ocidental neste século.
Em continuidade desse mesmo processo, após o avanço do conservadorismo associado à extrema direita, esses mesmos grupos sofreram reveses e perderam parte de sua força ao longo do tempo. No entanto, seria precipitado observar apenas de imediato, na superfície, e concluir que tais correntes políticas se dissiparam. Deste modo, sugiro substituir a conhecida análise política metafórica da “onda conservadora” pela compreensão de sua atuação a partir de um movimento fluido mais abrangente: a maré.
A Onda Conservadora
Talvez o primeiro acontecimento de grande relevância nesse contexto tenha sido a eleição de Donald Trump em 2016, com sua frase de impacto muito bem-sucedida: “fazer a América grande novamente”; isto é, instrumentalizando claramente uma concepção de que é preciso reformar o país em direção a padrões políticos, econômicos e morais passados ou tradicionais. Nessa estratégia, a extrema direita tinha por objetivo desconstruir políticas sociais sob um pano de fundo de motivação eminentemente nacionalista.
Apesar de a eleição de Donald Trump ter sido o evento de maior relevância no avanço do conservadorismo norte-americano, há outros fatos que contribuíram para o fenômeno no país: em 2010, os conservadores republicanos tiveram os melhores resultados desde 1993. Em 2012, em um primeiro revés, Barack Obama foi reeleito presidente dos Estados Unidos. Em 2014 os resultados eleitorais voltam a ser muito positivos para os republicanos, que passaram a ser maioria no Congresso e reverteram o domínio sobre estados historicamente progressistas.
Em sequência da eleição de Trump, o segundo marco significativo do conservadorismo ocidental neste século foi o crescimento de figuras políticas como Jair Bolsonaro no Brasil e sua consequente eleição à presidência da república em 2018. Bolsonaro se valeu de uma argumentação em torno do nacionalismo e do saudosismo à ordem passada. Pelo lado moral, o conservadorismo bolsonarista, incorpora o debate sobre sexualidade e gênero, fundamentando-se em pressupostos religiosos.
A onda conservadora no Brasil chegou também ao legislativo com o crescimento da bancada religiosa – elegendo 180 deputados e quatro senadores que fazem parte da Frente Parlamentar Evangélica. Nessa bancada, os políticos atuam a partir de pressupostos cristãos em diversos campos, tais como educação, saúde e segurança.
Em 2018, o Brasil não só elegeu Jair Bolsonaro e líderes religiosos, mas também garantiu vitórias significativas para o Partido Social Liberal (PSL), que tinha pouca expressividade, passando a ser a segunda maior bancada na Câmara dos Deputados. Do mesmo modo, candidatos conservadores ao senado e governos estaduais apoiados por Jair Bolsonaro tiveram votações expressivas por todo o país.
Como exemplo marcante da atuação de grupos sociais e políticos conservadores articulados em diferentes países, podemos citar os movimentos políticos organizados em reação à proposta de incluir educação sexual e discussão sobre questões de gênero nas escolas. O objetivo central dos mesmos era limitar uma suposta intervenção do estado na educação. No Brasil, essa bandeira foi defendida sob o lema “escola sem partido”.
Em outros países da América Latina, a agenda ganhou o slogan “Con mis hijos no te metas”. O mesmo movimento está presente no Peru, Equador, Chile, Argentina e Paraguai. Foi criada, também, uma versão alemã do Escola Sem Partido, pelo partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD), que encoraja alunos a denunciar em um portal (o Neutral Schools) professores que expressem opiniões políticas.
Seguindo no continente europeu, fenômenos como o crescimento de partidos nacionalistas e conservadores e a crise migratória remontam novamente ao apelo ao nacionalismo, o medo, a negação e intolerância em relação ao externo ou desconhecido. Em 2014, houve um significativo crescimento conservador na Europa. Reino Unido, Dinamarca e França ocuparam entre 25% a 30% de suas cadeiras no parlamento por partidos definidos como conservadores.
Ainda no contexto europeu, a onda conservadora amplificou essas manifestações políticas mesmo em territórios que já possuíam atuação significativa desses grupos. Países como Polônia e Hungria passaram a ter como principais representantes líderes políticos radicais conservadores e de extrema direita, tais como Mateusz Morawiecki e Viktor Orbán.
O Refluir Conservador
Eis que, como a maré, após o avanço e a ressaca, há a consequente retração de força semelhantemente avassaladora. A ascensão de Trump e o domínio do Partido Republicano, mesmo tendo sido resultado de um movimento conservador importante e robusto, não se manteve nas eleições presidenciais americanas de 2020. O democrata Joe Biden foi eleito, conquistando estados chave no país.
A figura de Trump enquanto presidente perdeu as eleições, isso é fato, porém a base ideológica e republicana conservadora se mantém consolidada. Mesmo depois de derrotado e silenciado nas redes sociais, Donald Trump seguiu organizando e impulsionando movimentos políticos entre os americanos, tal como a invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021. Deste modo, o bloco conservador que ganhou força com o “trumpismo” não parece ter sido suplantado.
Seguindo novamente uma lógica similar, Jair Bolsonaro perdeu as eleições em 2022 no Brasil, mesmo tendo a seu favor a máquina pública, uma força tarefa de produção de fake news e um grupo de seguidores fiéis organizados. Repetidamente, em contrapartida, o congresso e os governadores eleitos no país apontam para a sobrevivência do conservadorismo e da extrema direita.
Além disso, alguns dos movimentos e partidos que haviam crescido de forma súbita e contundente a partir de 2017, apresentaram sinais de enfraquecimento. É o caso da Alternativa para a Alemanha (AFD) que atualmente é a quinta maior força no parlamento alemão com 79 dos 736 assentos. Expressando claramente essa ambivalência da onda conservadora e sua relativa retração, na França as vitórias de Emmanuel Macron nas eleições presidenciais de 2017 e 2022 são contrabalanceadas pela expressividade da extrema-direita conservadora de Marine Le Pen da Frente Nacional.
Por fim, é um exemplo do arrefecimento do conservadorismo ou de um reequilíbrio das forças, as recentes eleições americanas ocorridas em novembro de 2022. Nesse pleito, os democratas obtiveram resultados melhores do que o esperado, mantendo maioria no Senado. Com esse resultado, os democratas e, especialmente, Joe Biden saíram fortalecidos em prejuízo dos conservadores republicanos apoiados por Trump.
A Maré Conservadora
Mesmo em movimento de retração e de uma relativa nova consolidação das forças progressistas, na profundidade da política ocidental há ainda a atuação organizada e robusta de forças conservadoras.
Falando nisso, podemos começar destacando a atuação do Capitol Ministries, grupo cristão conservador norte-americano criado para evangelizar lideranças políticas. O grupo vem se consolidando desde 2000 e, durante o governo Trump, ganhou espaço dentro da Casa Branca. A articulação do Capitol Ministries ocorre preponderantemente a partir da ação de políticos que ainda possuem grande legitimidade e poder no partido e na política americana, tais como: Mike Pence, Mike Pompeo e Michele Bachmann.
Além de sua atuação no país de origem, o Capitol Ministries já possui atuação na América Latina; no Brasil as operações iniciaram ainda durante o governo Temer e ganharam espaço no governo de Jair Bolsonaro. Ainda sobre o Brasil, apesar da derrota de Jair Messias Bolsonaro para Luís Inácio Lula da Silva, o congresso e governadores eleitos no país em 2022 estão mais alinhas ao conservadorismo do que ao progressismo; a despeito de a extrema direita ter cedido espaço ao “centrão” neste espectro.
Em termos gerais, foram eleitos apenas cinco senadores que fizeram oposição direta a Bolsonaro; em contrapartida, se elegeram 22 senadores declarados “bolsonaristas”. Entre os 513 deputados estaduais eleitos, mais de 250 estiveram associados à campanha de Jair Bolsonaro à reeleição. Igualmente, nas disputas pelo governo dos estados, a extrema direita e o centrão conquistaram maioria. É importante destacar as vitórias de dois grandes apoiadores do atual presidente em dois estados chave: no Rio de Janeiro com Cláudio Castro e em São Paulo com Tarcísio Gomes de Freitas.
No contexto mais recente europeu, a vitória de uma coalizão conservadora de extrema direita na Itália mostra que o avanço conservador não “morreu na praia”. Giorgia Meloni do Partido Irmãos Itália se tornou primeira-ministra do país reivindicando a herança ideológica e política de Benito Mussolini e com o slogan já conhecido de “Deus, pátria e família”. Entre as principais bandeiras de Giorgia estão: o euroceticismo, políticas anti-imigração e redução de direitos da comunidade LGBTQ.
Além da Itália, outros países europeus, tais como: Suécia, Polônia e Hungria, seguem apresentando um forte e inquestionável protagonismo do conservadorismo. O ideário conservador também segue atuante na Espanha, Alemanha e França.
A partir desse cenário, sugiro que compreendamos a atuação do conservadorismo na política ocidental deste século para além de suas ondas. Buscando um ponto de vista mais amplo que contemple todos os fluíres e refluíres do fenômeno. Seguindo essa lógica, resta a nós estarmos atentos para tentar avaliar e prever a força dos próximos deslocamentos.