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img: Leo Drumond/CC BY

Os sacramentos da política brasileira: uma digressão da relação entre religião e poder no país

08/12/2022

Jéssica da Silva Duarte, Doutora em Ciência Política (UFRGS)

No atual contexto político do Brasil, após os resultados das eleições ocorridas entre 2018 e 2022, a atuação das igrejas na política brasileira, especialmente as neopentecostais, tem ganhado saliência nos estudos acadêmicos, na mídia especializada e entre os próprios partidos. De fato, quando analisamos estritamente a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do país (com um discurso conservador e de extrema direita) somado ao crescimento da ocupação de assentos no congresso por líderes religiosos e a um novo pleito em 2022 marcado por posicionamentos e ataques de cunho religioso, não há como negar a relevância do uso da fé nas mais recentes disputas de poder. Contudo, para avaliar melhor esse cenário, precisamos ir além da superfície e nos questionar sobre como ou por que a religião influencia a política, o seu real ineditismo nos tempos atuais e o seu papel na história política brasileira. É isso que me proponho a fazer nesse texto, convido vocês a me acompanharem nessa tentativa.

Religião e política no Brasil

A ideologia é uma ferramenta social importante e de muita potência, basicamente, porque estabelece repertórios simbólicos que são absorvidos pelo imaginário coletivo, pautam a visão de mundo dos indivíduos e permeiam diretamente as disputas de poder. Entre as muitas ideologias existentes, o viés conservador dialoga diretamente com as crenças e dogmas religiosos, e é nessa esteira que avançaram para o centro da política nacional o bolsonarismo e boa parte das lideranças religiosas que hoje atuam no legislativo e/ou influenciam a opinião pública. No caso de Jair Bolsonaro é interessante notar que, mesmo sem performar idealmente os princípios conservadores cristãos, a incorporação e instrumentalização de alguns temas e demandas lhe garantiu a adesão de parte majoritária desse eleitorado; e, com isso, podemos inserir aqui o primeiro “por que?” desta reflexão.

Certamente, momentos de crise são muito propícios para a reverberação e aglutinação desse tipo de retórica. Mais certo ainda é determinar que a política brasileira vem passando por um período de grandes conturbações e instabilidades política, social e econômica desde os protestos de 2013. Por certo, a política – não só a brasileira – consiste em um certo nível de drama. Essas experiências são parcialmente reversíveis, mas são vividas intensamente em termos cognitivos e emotivos, acionando diretamente os afetos e a insegurança quanto ao futuro.

Em um contexto histórico mais amplo, religião e política se misturam desde sempre. A essência do uso estratégico da religião pela política (e vice-versa) já constava em Maquiavel quando ele apontava que mais importante do que o conteúdo ou os atores religiosos, é a sua função aglutinadora e normativa da vida coletiva. De forma ainda mais específica, a religiosidade foi parte fundamental para a “fundação” do Brasil. Em outras palavras, o Brasil enquanto Estado-nação foi construído a partir da influência e impacto cultural provocados por uma colonização europeia que, entre outros objetivos, tinha como missão disseminar a fé e a crença católica. Provavelmente, a maior novidade nesse cenário é a emergência evangélica pentecostal.

  De todo modo, essa “novidade” remonta às últimas quatro décadas e tem características que transcendem sua agência e força particular. O avanço político neopentecostal é resultante de uma conjunção de processos dentro das igrejas, bem como de mudanças e oportunidades políticas. No que se refere à atuação desse movimento, há uma combinação de argumentos que merece destaque: a minoritização, isto é, a demanda por mais representatividade da “maioria cristã” e do setor evangélico na esfera pública associada a um perfil programático ideológico a partir de discursos e princípios conservadores. 

A emergência do pentecostalismo

Além dessas duas ferramentas, a politização do setor evangélico foi proporcionada por meio de uma lógica corporativa para despertar e mobilizar os fiéis e seus líderes. Em termos contextuais, esse processo foi oportunizado no país a partir da liberalização do regime militar e da consequente formação de novos grupos e demandas. O resultado dessa movimentação foi a emergência do pentecostalismo e do conservadorismo, bem como a constituição de um ator coletivo: “os evangélicos” ou a “bancada da bíblia”.

Outra força para a ascensão evangélica à elite política foram as mudanças políticas, econômicas e morais/comportamentais ocorridas neste século, uma vez que a contestação da ordem social é compreendida por parte dos indivíduos – os conservadores – como uma ameaça a ser combatida. Isto é, a transformação e mudança gera uma dicotomização social capaz de gerar polarização e fortalecer grupos que até então, sem um “inimigo a combater”, não tinham tanta relevância. Isto posto, mais uma vez há um efeito coletivo e corporativo a partir da lógica do “nós versus eles”. Esse funcionamento, por sua vez, aciona fortemente o apelo emocional/afetivo de pertencimento em detrimento da capacidade cognitiva e crítica. 

Em proveito disso, nas redes digitais grupos conservadores de extrema direita têm utilizado como estratégia de comunicação política a desinformação para motivar e ativar a identidade e a atuação política desses indivíduos. Nessa crise de hegemonia, a divisão polarizada determina uma disputa pelo “povo”. É relevante salientar que, mesmo antes de ter protagonismo e devida coesão, setores da igreja evangélica, em especial da Igreja Universal, fizeram parte da base dos governos do PT de 2002 até semanas antes do impeachment. Além disso, também é fato que nem todos os conservadores são evangélicos e nem todos os evangélicos são conservadores

Neste mesmo sentido, a ideia de “voto evangélico” enquanto uma manifestação/escolha alinhada e homogênea ideologicamente é falsa. Entre 1970 ao período atual, os evangélicos já votaram na Arena (partido da ditadura) e na sua oposição (MDB/PMDB), passando pelo trabalhismo do Brizola, a direita de Collor e a esquerda representada por Lula. Considerando esses pontos e tudo que foi refletido até aqui, vamos tentar escrutinar esse processo atual que tem unido o eleitorado pentecostal e conservador em prol de figuras relativamente controversas como Jair Messias Bolsonaro.

Bolsonaro e os valores cristãos

De um modo geral, Bolsonaro não possui o perfil ideal de um representante do pentecostalismo, no seu currículo pessoal há, entre outras coisas, diversos casamentos, acusação de traição, temperamento agressivo e defesa de torturadores. Contudo, ainda assim, ele conseguiu capturar e mobilizar o eleitorado conservador – que já existia, mas participava de maneira difusa da política, suplantando a direita moderada no país e corporificando esse “novo” posicionamento político. A chamada onda conservadora articula de forma relativamente combinada quatro linhas de forças sociais: liberalismo econômico, conservadorismo moral, punitivismo e a intolerância social.

Mas nem só de tipos conservadores vive o bolsonarismo, o Messias também aciona os seus seguidores por meio do ressentimento criado no país a partir do antipetismo e da crise econômica. Com isso ele conquista além dos evangélicos, homens e mulheres negros periféricos, o motoboy, o motorista de aplicativo e o homem branco de classe média. Nesse ponto, mais uma vez fica evidente o pragmatismo da agenda e das alianças políticas dos grupos pentecostais. 

Nesse contexto, é importante mencionarmos a utilização massiva de notícias falsas nas mídias sociais relacionadas à uma suposta “cristofobia”. Um dos principais mecanismos utilizados nessas interações foi a plataforma digital WhatsApp, especialmente em círculos fechados e nos quais pressupõe-se confiança nas relações, tais como: grupos de família, amigos, trabalho, vizinhos ou comunidades religiosas.

Entre janeiro e setembro de 2022, a mensagem mais compartilhada nos mais de mil grupos de WhatsApp acompanhados por pesquisadores da UFMG continha ataques ao então candidato Luiz Inácio Lula da Silva e as expressões ‘cristofobia’, ‘destruir igrejas’, e ‘intolerância religiosa’. A retórica da ameaça à liberdade religiosa possui ainda maior apelo por estar diretamente associada com outra narrativa: a de que há uma disputa entre valores morais, tradicionais e a esquerda política. Obviamente, apesar de sua aderência, não faz sentido considerar que haja perseguição aos evangélicos em um país majoritariamente cristão e em que 30% da população se identifica com esse segmento. 

Fora das redes sociais, muitas igrejas assumiram a função de comitês de campanha, nas quais as lideranças religiosas convenciam e pressionavam fiéis a votar em Jair Bolsonaro. A disputa eleitoral e ideológica atingiu direta e agressivamente o campo religioso no país. A polarização política e a instrumentalização da fé foram tão intensas que gerou dicotomia e conflitos até mesmo entre os cristãos – evangélicos e católicos. Se, por um lado, Bolsonaro foi presença constante em cerimônias evangélicas e sua derrota foi lamentada por lideranças pentecostais. Por outro lado, o mesmo Jair foi criticado por bispos católicos pela “exploração da fé”. 

O novo governo e as igrejas em 2023

Possivelmente os momentos mais significativos desse descompasso entre a igreja católica e o bolsonarismo tenham sido as vaias que o candidato recebeu durante o evento do Círio de Nazaré e as cenas de tumulto causado por seguidores de Bolsonaro nas festividades do dia de Nossa Senhora Aparecida. A estimativa é de que entre católicos 59% votaram em Lula e 41% em Bolsonaro, enquanto entre evangélicos a vantagem é de Jair Messias Bolsonaro com 69% dos votos contra apenas 31% de Luiz Inácio Lula da Silva. Para 70% dos indivíduos sem religião, Lula era o melhor candidato. 

Antes de finalizar, resta algumas inferências sobre a relação entre a religião de um modo geral, o pentecostalismo e o futuro governo Lula. Para Joanildo Burity, cientista político e especialista no assunto, a consolidação do novo lulismo estará condicionada ao desfecho da crise hegemônica em que o país se encontra desde as eleições de 2014. Contudo, mesmo que se alcance a estabilização e a normalidade na política brasileira, ainda é pouco provável que o novo presidente eleito consiga fazer avanços em uma agenda progressista. Em contrapartida, conforme já foi mencionado, a aliança de Bolsonaro com o pentecostalismo é pragmática, logo há chances de o PT se reconciliar com o seguimento religioso, se conseguir fazer concessões e criar novas lideranças políticas nesse setor. Resta, então, acompanharmos as próximas páginas desta história tão “sagrada” assim.