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O bolsonarismo e a direita democrática: embate pelo protagonismo na oposição
18/01/2023
Giovanna Macieira Rosario, Mestranda em Relações Internacionais (IRI-USP)
A ascensão da extrema-direita brasileira nos últimos anos, representada principalmente pela figura do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, deu início ao que talvez seja a maior transformação do espaço de competição política brasileiro. Sai de cena a direita democrática e sobe ao palco da política a direita extremada, que rejeita as normas e práticas que sustentam a democracia representativa.
É comum a sensação de que a grande prejudicada por essa ascensão da extrema-direita seja a esquerda ou centro-esquerda, mas se enganam os que confiam nessa primeira impressão. Durante os quatro anos de governo Bolsonaro, a esquerda ocupou o espaço da oposição; a direita democrática, entretanto, parece ter evaporado. Não que não existam representantes políticos ou eleitores pertencentes à esfera da direita democrática, mas esses tornaram-se uma minoria que não ocupa mais nenhum dos pólos do embate político nacional e que carece de capacidade de organização.
Até a ascensão de Jair Bolsonaro aos holofotes políticos, a clivagem que caracterizava o espaço de competição política brasileiro era aquela entre a centro-esquerda e a centro-direita. Não à toa, desde 1994 até 2014, todas as eleições presidenciais foram disputadas pelo PT, de centro-esquerda, e pelo PSDB, de centro-direita. Diante da eleição de Bolsonaro para a Presidência da República em 2018, ocorre o que os cientistas políticos, Fabiano Santos e Talita Tanscheit, denominam como a “troca de guarda” na direita brasileira, ou seja, a substituição da direita democrática por uma direita radical.
Os fatores que favoreceram essa “troca de guarda” são, muitas vezes, específicos da dinâmica política brasileira. No entanto, não se pode deixar de notar que o fenômeno da ascensão da extrema-direita e da perda de espaço político da direita moderada não ocorre somente no Brasil. Em países europeus, nos Estados Unidos e em outros países latino-americanos, como Chile e Colômbia, é possível identificar uma dinâmica similar, caracterizada pela perda de espaço político da direita moderada em favor da ascensão de uma extrema-direita.
Tendo em vista esse cenário, há de se questionar sobre o futuro da direita brasileira. Diante da vitória do PT e do presidente Lula sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro, qual direita assumirá o papel de protagonista da oposição nos próximos quatro anos? Este texto não se pretende a nenhum exercício de futurologia a fim de responder essa pergunta, mas possui como objetivo a análise dos fatores que permitiram a “troca de guarda” na direita brasileira, a fim de compreender de que forma a atual conjuntura política pode servir a uma reorganização da direita moderada ou aprofundar ainda mais a clivagem política entre esquerda e extrema-direita.
O deslocamento na direita brasileira
Em artigo publicado em 2019, Fabiano Santos e Talita Tanscheit buscam avaliar os fatores que levaram a “troca de guarda” na direita brasileira e a consequente “ruptura com as bases do sistema partidário que estiveram em funcionamento por mais de duas décadas no país”, caracterizado pela clivagem política entre centro-esquerda e centro-direita.
Afinal, apesar do evento demarcador da substituição da direita moderada pela extrema-direita ter sido a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro, essa “troca de guarda” não ocorreu somente no âmbito do poder Executivo. É notório que o então candidato à presidência pelo PSDB em 2018, Geraldo Alckmin, teve o pior desempenho da história do partido, no entanto, a perda de representatividade da sigla no Parlamento foi ainda mais significativa. O PSDB perdeu quase metade dos seus parlamentares em 2018, caindo da terceira para a nona bancada do Congresso em termos numéricos.
Sendo assim, Santos e Tanscheit buscam analisar os dois fatores puramente domésticos que permitiram a queda da direita moderada e a ascensão da direita radical no espaço de competição política brasileiro. Em primeiro lugar, o impacto da operação Lava Jato sobre o sistema partidário. Em seguida, a estratégia do PSDB e do MDB, partido governista por excelência mas que vinha se deslocando para a direita, de ascensão ao poder por meio do impeachment da então presidente, Dilma Rousseff.
A operação Lava Jato, iniciada em março de 2014, permitiu que a corrupção ocupasse o centro do debate político. Apesar da impressão inicial de que a Lava Jato atingiria de maneira duradoura apenas o PT, principalmente devido à prisão de Lula que terminou por impedi-lo de concorrer à presidência em 2018; partidos da direita moderada como PSDB e MDB tiveram importantes lideranças atingidas pelos desdobramentos da Operação. Desse modo, o clima de rejeição à política contribuiu para que a direita moderada chegasse enfraquecida nas eleições legislativas e presidenciais de 2018 e acabasse perdendo o protagonismo desse lado do espectro político para a extrema-direita, que anteriormente carecia de projeção nacional.
Por outro lado, o impeachment da presidente Dilma Rousseff, que é compreendido por grande parte da ciência política como golpe parlamentar, produziu efeitos indesejados sobre a direita moderada. O processo iniciou-se em dezembro de 2015 e Santos e Tanscheit o compreendem como uma tentativa de reorganização e de ascensão ao poder Executivo da direita brasileira, que não havia ganho nenhuma eleição presidencial desde 1998. Durante e após o processo de impeachment, partidos essencialmente governistas migraram para o campo da direita e formaram a base parlamentar que daria sustentação ao governo do presidente Temer, empossado após a destituição de Dilma Rousseff.
No entanto, o governo Temer acabou conhecido por seus catastróficos níveis de aprovação. Em setembro de 2018, apenas 4% da população aprovava o governo, que optou por não tentar a reeleição. Ou seja, quase toda a direita moderada brasileira integrava a base de apoio de um governo extremamente impopular devido à aprovação de medidas econômicas controversas, como a reforma trabalhista, e às denúncias de corrupção que cercavam o então presidente e o núcleo do governo.
Nesse sentido, é possível observar como algumas das estratégias de ação adotadas pela direita moderada brasileira terminou por permitir, em detrimento dela mesma, a ascensão da extrema-direita. Consequentemente, as duas últimas eleições presidenciais brasileiras foram caracterizadas por uma disputa entre a centro-esquerda, representada pelo PT, e a extrema-direita, representada por Jair Bolsonaro.
No entanto, a “troca de guarda” à direita do espectro político não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Sendo assim, é de se esperar que existam características comuns entre os desdobramentos de tal fenômeno no Brasil e em outros países.
Um panorama do continente e do mundo
Em 2020, nos Estados Unidos, a extrema-direita do Partido Republicano, representada por Donald Trump, enfrentou mais uma vez a ala moderada do Partido Democrata, representada naquele ano por Joe Biden. A diferença é que em 2020, ao contrário do que aconteceu em 2016, Donald Trump foi derrotado, o que, por sua vez, não permitiu que a direita moderada retomasse o controle do Partido Republicano, que continua profundamente dividido entre a ala radical, formada majoritariamente pelos apoiadores de Trump, e a ala avessa ao trumpismo.
No Chile em 2021, a disputa presidencial se concentrou entre o candidato da coalizão de esquerda, Gabriel Boric, e Antonio Kast, da extrema-direita do Partido Republicano chileno; enquanto o candidato governista da direita moderada, Sebastian Sichel, ficou de fora do segundo turno. Diante de seu fracasso eleitoral, a direita chilena optou por apoiar Kast, mas seu apoio ao candidato da extrema-direita não foi suficiente para impedir a ascensão de Boric à presidência do país.
Na Colômbia em 2022, o esquerdista Gustavo Petro derrotou o candidato de extrema-direita, Rodolfo Hernández, e tornou-se o primeiro presidente de esquerda da história de um país que por muitos anos foi assombrado pela presença das guerrilhas. Hernández, conhecido por agressões verbais e físicas a seus críticos e por ser uma espécie de Donald Trump colombiano, surpreendeu ao desbancar no primeiro turno das eleições o candidato da direita conservadora Fico Gutiérrez.
Diante desses exemplos, é possível observar que o embate político entre centro-esquerda e centro-direita que prevaleceu nas democracias ocidentais desde as últimas décadas do século XX, tem cedido espaço para um embate político protagonizado pela esquerda e pela extrema-direita. A fim de explicar tal fenômeno, o estudioso da democracia, Marc F. Pattern aponta para a perda de espaço de uma clivagem política que antes era essencialmente econômica, com a centro-esquerda e a centro-direita apoiando os princípios básicos da convivência democrática, mas assumindo posições opostas no que diz respeito à intervenção do Estado na economia, privatizações e regulamentação da economia.
No lugar dessa clivagem econômica, vem se estabelecendo um embate cultural entre valores tidos como inegociáveis. Dessa forma, a extrema-direita que agora ocupa o protagonismo desse lado do espectro político, não tem apego programático a pautas econômicas, seu compromisso consiste em uma agenda regressiva em relação aos direitos das minorias e a aversão à democracia liberal e seu Sistema de Freios e Contrapesos. Além disso, na América Latina, o apelo autoritário da direita radical se expressa particularmente por meio do elogio às ditaduras militares que governaram boa parte do continente até o final do século XX, enquanto a direita moderada participou ativamente do processo de redemocratização do continente.
O desafio da direita democrática
O principal desafio da direita democrática nos próximos quatro anos de governo Lula será o de ocupar a oposição e ainda assim se diferenciar da extrema-direita. Para isso, será necessário a construção de um debate político em torno da realidade tangível, como programas de segurança pública, economia e educação.
A extrema-direita pauta, e seguirá pautando, o debate em torno de “valores” e de uma suposta “moralidade”. Se o grande debate político dos próximos quatro anos se estruturar em torno desses termos, não haverá espaço para ser ocupado pela direita moderada. No entanto, se uma direita democrática conseguir se organizar em torno de uma oposição programática, abandonando discursos de cunho moral, existe a chance de retomar o protagonismo que já lhe pertenceu.
Uma vez que a oposição é programática, ela pode ocorrer tanto do lado de fora, quanto do lado de dentro do governo. Diante disso, nada impede que nomes da direita que venham a ocupar cargos no Executivo federal, dado o caráter de Frente Ampla da campanha eleitoral de Lula, venham a se firmar como importantes nomes para uma potencial candidatura da direita moderada em 2026, como pode ser o caso da ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet.
A recomposição de um cenário político composto por uma centro-esquerda e por uma centro-direita que se opõem é fundamental para o futuro da democracia no país. Nesse sentido, faz-se necessário que a própria esquerda resista a tentação de ingressar no debate moral que continuará sendo proposto pela extrema-direita, um debate entre a reivindicação de valores tido como progressistas e a preservação de valores tidos como “tradicionais familiares”. A retomada do protagonismo pela direita moderada é possível e, se o objetivo for a recuperação da estabilidade democrática, necessária. No entanto, diante de uma eleição legislativa que compensou candidatos que abraçaram o bolsonarismo e penalizou os que dele se distanciaram, é provável que uma parcela relevante do Parlamento continue a tentar pautar o debate no terreno da moral, o que apenas favorece a extrema-direita e amplia os obstáculos que deverão ser superados pela direita moderada. No entanto, a possibilidade da extrema-direita conseguir se firmar como principal bloco de oposição ao governo, depende não dela própria, mas do compromisso da centro-direita e da centro-esquerda em estruturar um debate programático.