Blog
De volta ao presidencialismo de coalizão? Os desafios do governo Lula III
07/02/2023
Bruno Marques Schaefer, Doutor em Ciência Política (UFRGS)
O governo Lula foi inaugurado no dia primeiro de janeiro de 2023, em uma cerimônia de posse que contou com a presença de diversos chefes de Estado, bem como políticos nacionais. Nos dias seguintes, ocorreram as posses dos ministros de Estado: 37 pastas, com representantes de 9 partidos e 11 ministros sem atuação partidária. O cenário é bastante diferente ao do governo Jair Bolsonaro (2019-2022), com 22 ministérios e quatro partidos representados.
Enquanto Lula terá apoio legislativo na Câmara dos Deputados de 269 dos 513 parlamentares (pressupondo que todos votem de acordo), Bolsonaro detinha apoio de 123 (formalmente).
Esse número inicial foi interpretado de várias formas por analistas políticos, mais ou menos qualificados: seja como um retorno à normalidade política na discussão entre poderes Executivo e Legislativo, seja como um convite à corrupção e o toma lá dá cá. Essa última interpretação, bastante rasa da política, em geral, e da política brasileira, em particular, não leva em conta, em primeiro lugar, a necessidade da formação de coalizões em governos em que o partido do chefe do Executivo, seja o primeiro-ministro ou presidente, não possui maioria parlamentar; e, em segundo lugar, a própria dinâmica das negociações entre partidos e parlamentares.
No caso de negociação entre lideranças partidárias e presidentes (no atacado), há potencial de maior estabilidade; no caso da negociação direta entre presidentes e parlamentares individuais (no varejo), maiores os custos e potencial de instabilidade: como o observado ao fim do governo Bolsonaro (Orçamento Secreto).
Neste texto, trato das coalizões como tema amplo; partindo de sua definição e do conceito de presidencialismo de coalizão (1); depois trato da relação entre coalizões e corrupção (2); para, por fim, falar brevemente sobre alguns dos desafios do governo Lula que se inicia agora (3).
Em 1988, era publicado na Revista Dados o artigo “Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional brasileiro”, de autoria do cientista político e sociólogo Sérgio Abranches. Abranches afirma, no calor da redemocratização brasileira e elaboração da Constituição Cidadã (1986-1988), que o modelo de governança do país seria sui generis, por combinar características peculiares: federalismo robusto com grande poder dos governadores, multipartidarismo, sistema proporcional de lista aberta para eleição da Câmara dos Deputados, majoritário simples para eleição do Senado e um presidente com fortes poderes, mas minoritário.
Trinta anos depois, Abranches manteve o diagnóstico ao considerar que esse modelo se diferenciaria de outros presidencialismos (como o dos EUA) e de outros governos de coalizão, como os Parlamentarismos da Europa Ocidental. No primeiro caso, o sistema multipartidário brasileiro levaria a necessidade da construção de coalizões (acordo político para partilha do governo entre partidos aliados), o que não ocorreria nos EUA (sistema bipartidário); bem como seria diferente da Europa, porque as coalizões levariam em conta não só arranjos partidários, mas também regionais.
Neste período, o debate proposto por Abranches ajudou a construir uma agenda de pesquisas bastante produtiva na Ciência Política brasileira. A investigação de como o presidencialismo funciona no país, e seus traços de semelhança e diferença com outros locais, tornou-se uma área de intenso debate. Em termos comparativos, porém, a literatura tem apontado que a formação de coalizões não é um traço específico do caso brasileiro, sendo comum, sobretudo, na América Latina.
A coalizão significa a partilha do governo, especialmente, postos ministeriais, em troca de apoio legislativo ao presidente. A escolha por essa estratégia leva em conta o fato de que, quase sempre, o partido do presidente não conquista a maioria no Legislativo. Essa posição minoritária é um risco a manutenção do mandato presidencial, dada a existência do impeachment, bem como pode ser um entrave para aprovação da agenda. Como Executivo e Legislativo, no presidencialismo, são eleitos separadamente, os acordos demandam costura fina e levam em conta fatores conjunturais (a força de cada partido), como estruturais (o peso das instituições).
Nos países em que as Constituições dão maior poder legislativo ao presidente (emitir decretos com força de lei; controle do orçamento; entre outras medidas), seriam menores os incentivos a formação de coalizões. O contrário sendo verdadeiro. A força de cada partido também é importante, dado que existem organizações orientadas ideologicamente que se aproximarão ou distanciarão de presidentes de acordo com a agenda de políticas públicas; bem como partidos essencialmente governistas, orientados pela conquista de cargos.
A distância ideológica entre o presidente e a média do Legislativo também interfere na formação e gestão da coalizão. Um presidente de esquerda com um Legislativo orientado à esquerda, por exemplo, terá mais facilidade de negociação e aprovação da agenda do que no caso de não congruência entre poderes.
Esse termo, inclusive, gestão da coalizão, tem sido bastante explorado nas pesquisas contemporâneas. Além de verificar quais partidos compõem o governo e o grau de congruência entre seu peso nos ministérios e seu peso no Legislativo (proporcionalidade ou coalescência); diversas cientistas políticas exploram os mecanismos utilizados por presidentes para manter a coalizão disciplinada.
Dentre os mecanismos estão instrumentos como liberação de emendas parlamentares em momentos estratégicos (votações importantes); nomeações para o segundo ou terceiro escalão do governo; etc. Neste quesito, as relações entre atores políticos podem, ênfase no podem e não “devem” ou “tendem”, enveredar para corrupção ou outro tipo de relacionamento promíscuo.
Em inventário sobre presidencialismos de coalizão ao redor do mundo, os cientistas políticos Paul Chaisty, Nic Cheeseman e Timothy J. Power, demonstram que as razões para coalizões no Brasil não são diferentes do que em outros países. A partir de entrevistas com parlamentares em nove países, os autores apontam que a probabilidade de participar da coalizão é usualmente ligada ao acesso a recursos (pork-barrel), mais do que questões ideológicas. No entanto, o ponto diferencial do Brasil é a quantidade de partidos (em 2018, 30 partidos com representação na Câmara dos Deputados e 14 partidos efetivos). Essa diversidade torna a formação de coalizões necessária e custosa, o que, novamente, pode desbancar para a corrupção e/ou ineficiência na alocação de recursos.
Em 2017, o Brasil aprovou uma reforma política bastante ampla que criou mecanismos para diminuir essa intensa fragmentação: fim das coligações proporcionais e imposição de uma cláusula de desempenho. Em 2022, observamos a redução da fragmentação pela metade. Este é um bom indício. A continuidade dessas instituições pode diminuir ainda mais o número de partidos a um valor racional. Outro ponto que merece atenção, porém, é a natureza ideológica da coalizão. O Congresso Nacional brasileiro está no ponto mais à direita de sua história recente, o que forçou o presidente de um partido de esquerda (PT), incluir agremiações de direita no governo. Os resultados desta combinação em termos da alocação de recursos, produção de políticas públicas e agenda legislativa ainda são incertos.