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Do inédito ao inerente: o ecossistema da política brasileira atual

05/10/2022

Jéssica da Silva Duarte, Doutora em Ciência Política (UFRGS)

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As últimas eleições presidenciais, em 2018, representam um marco na história política do Brasil. Primeiramente, porque foi a primeira eleição no país em que a internet e as mídias digitais realmente se estabeleceram como um espaço absoluto de militância política e meio de comunicação. Dentro desse contexto, foi também um pleito fortemente marcado pela disseminação de informações falsas e incorretas nesses meios. Em parte, é justamente essas alterações que favoreceram a atuação de think tanks e de influenciadores para o crescimento da chamada “onda conservadora” e a consequente eleição de Jair Bolsonaro; um candidato que até então não tinha expressividade política e representante de uma sigla partidária sem tradição com apenas 8 segundos de televisão no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE).

A desinformação, quando utilizada de forma sistemática, acaba por esvaziar a agenda política, impondo em seu lugar uma pauta baseada em acusações, teorias conspiratórias e sucessiva necessidade de esclarecimentos. Este fato pôde ser claramente observado no debate do dia 29 de setembro de 2022 transmitido pela Rede Globo. Precisamos dar atenção a esses fatos, porque a informação e a capacidade crítica são aspectos que podem ser considerados como fundamentais para o debate democrático.

Com isso, é quase inevitável questionar se esses mesmos grupos e estratégias estão sendo novamente relevantes nestas eleições de 2022. A desinformação inclui não só fake news, mas também teorias da conspiração e distorção de fatos. Nesse tipo de tática que transforma a mentira em instrumento de comunicação, os fatos são distorcidos ou inventados em prol da mobilização da opinião pública a partir de suas emoções e crenças. Outra característica do modelo atual de desinformação é a sua adaptação para o modo de comunicação das redes sociais, em que há uma combinação dos falsos argumentos políticos com o entretenimento.

Esse formato tem sido muito efetivo no Brasil, uma vez que já em 2016 o número de pessoas que usam mídias sociais como fonte de informação no país foi estimado em 72% . Em outro relatório feito pela Agência Lupa em parceria com a USP e a UFMG foi identificado que entre as cinquenta imagens com maior veiculação nos grupos de WhatsApp, apenas quatro eram verdadeiras; enquanto todas as outras consistiam em desinformação com o intuito de influenciar o eleitorado. Devido a este contexto, um conjunto de organizações conhecidas como fact checkers, na tradução checadoras de fatos, foram criadas com o intuito de mitigar o impacto da desinformação, tais como: Agência Lupa, Aos Fatos, Boatos.org, Comprova, E-Farsas, Fato ou Fake e até o Bolsonômetro da Folha de São Paulo.

Nessa mesma intenção, o TSE tem buscado fazer acordos com as empresas responsáveis pelas redes sociais com maior número de usuários no país. Contudo, esses acordos são vagos e pouco eficazes. Primeiramente, não existe um documento unificado para todos os aplicativos, porém há um ponto em comum entre todos – e ele não é positivo: não há nenhum tipo de responsabilização das plataformas caso os seus serviços de anúncios sejam utilizados para propagação de desinformação. Além disso, quem tem poder decisório sobre o que deve ou não ser apagado ou punido é exclusivamente as empresas, não tendo o TSE nenhum poder sobre isso além da capacidade de fazer denúncias. Por fim, o processo de comunicação entre as redes e o TSE não se dá de forma simples e rápida, o que, no melhor dos casos – quando a desinformação é retirada do ar, faz com que o conteúdo fique acessível por tempo o bastante para atingir muitas pessoas.

A viralização desse tipo de conteúdo por meio das redes serve a interesses de elites políticas, porque mobiliza seus apoiadores. Essas mensagens são geralmente direcionadas a favor ou contra grupos políticos, sendo particularmente eficazes para ativar identidades políticas e tornar as pessoas mais orientadas para objetivos políticos. O aumento da dispersão de informação tem gerado muita dificuldade na busca por fatos, fazendo com que as pessoas fiquem cada vez mais confusas e suscetíveis a versões da realidade construídas a partir de interesses específicos.

Substantivamente, no Brasil essas ferramentas vêm sendo especialmente utilizadas e absorvidas por grupos conservadores. Conforme um estudo da organização Avaaz, 98% dos eleitores de Jair Bolsonaro em 2018 foram expostos a notícias falsas e desses 89,7% acreditaram que as informações eram verdade. Do mesmo modo, em 2022 temos visto Jair Bolsonaro e seus apoiadores utilizaram predominantemente apelos emocionais na construção de sua imagem enquanto representante dos valores conservadores, capaz de combater a ideologia progressista ou de esquerda.

No período pré-eleições de 2018 e durante as próprias eleições esteve entre os principais temas de fake news: a segurança das urnas eletrônicas e a lisura do processo eleitoral, o marxismo cultural e a ideologia de gênero. Já durante o seu governo, a desinformação esteve focada especialmente em prol da gestão do presidente e contra os opositores do mesmo. Sendo assim, nos últimos três anos e meio foram disseminadas uma grande quantidade de mentiras e distorções sobre: o desmatamento na Amazônia, corrupção, saúde e religiosidade.

É importante observar mais detalhadamente o tópico da saúde pública, porque a desinformação foi direcionada especificamente à gestão da crise sanitária da Covid-19 e das formas de lidar com a doença em si. Neste âmbito foram utilizadas fake news para defender um tratamento precoce que não tinha evidências científicas, desacreditar a vacina e outros modos de prevenção como o uso de máscara, o isolamento social e o lock down. Ainda sobre esse aspecto, a forma de mobilizar a população em uma direção contrária à indicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), não se restringiu às redes, mas também esteve presente em discursos do presidente e seus aliados e em atitudes concretas, como a promoção de aglomerações durante o período de isolamento social.

Em 2022, principalmente neste período de campanha eleitoral, os principais alvos de desinformação pelo presidente e candidato Jair Bolsonaro e pelo grupo conservador foram: a cristofobia – e perseguição em geral de valores tradicionais e religiosos, a insegurança das urnas eletrônicas, e informações sobre corrupção e prisão do seu principal opositor, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nesses episódios as eleições no país são descritas como facilmente manipuláveis e são feitos falsos anúncios sobre invasão e adulteração de urnas eletrônicas. Em seu momento de ápice, o próprio candidato Bolsonaro investido do cargo de presidente da república reuniu diferentes embaixadores estrangeiros para atacar o processo eleitoral brasileiro.

Além disso, conforme citado, há uma grande quantidade de material circulando nas redes com dados e notícias falsas acerca das denúncias infringidas anteriormente sobre o candidato Lula e todo o processo que envolveu a sua prisão, sua posterior soltura e a anulação das condenações. De todas essas, talvez a mais difundida seja a de que outros candidatos do espectro progressista, tais como Lula e Ciro Gomes, estariam perseguindo os valores cristãos em uma espécie de “cristofobia”.

As mensagens compartilhadas associam políticos do campo progressista a falsos projetos para perseguir as igrejas, proibir pregação de pastores, criminalizar a fé evangélica e até modificar a bíblia. Essas narrativas constroem um imaginário em que Jair Bolsonaro é um representante da fé e de Deus, enquanto Lula, por exemplo, seria um anticristão ou um cristofóbico.

O levantamento feito pelo Monitor de Whatsapp da UFMG em parceria com a BBC News revela que a mensagem mais compartilhada nos mais de mil grupos acompanhados na rede social desde o início deste ano é de ataque ao ex-presidente e agora candidato Luiz Inácio da Silva; o texto inclui expressões como: cristofobia, destruir as igrejas e intolerância religiosa. Esse discurso de ameaça à liberdade religiosa faz parte também de uma ideia maior e igualmente difundida: a de que existe uma guerra de valores entre os religiosos e progressistas/esquerdistas no país.

Em complementaridade, precisamos identificar se os cidadãos que possuem crenças e valores conservadores de fato são os que mais recebem e repassam desinformação. Nesse aspecto, podemos observar que os sites de esquerda que disparam propagandas de desinformação não chegam a atingir metade dos acessos de páginas bolsonaristas. Além disso, pesquisas do InternetLab, centro de pesquisa em Direito e tecnologia, em parceria com a Rede Conhecimento Social, mostram que os conservadores são de fato os mais propensos a divulgar desinformação; em torno de 40% dos indivíduos identificados como conservadores admitem ter repassado desinformação sem checar a fonte, entre os progressistas esse valor cai para 25%. Em outra pesquisa, feita pelo NetLab (Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais da UFRJ), 36% de todos os entrevistados afirmaram ter o voto influenciado por informações obtidas via WhatsApp.

Por fim, quanto ao perfil de consumo, progressistas parecem se informar mais pelos veículos tradicionais de imprensa enquanto os conservadores costumam usar a internet como forma de acessar informações, com frequência em agregadores de conteúdo como o Google Notícias e redes sociais de forma geral. Para finalizar com a pergunta inicial que norteou nossa análise: ao que tudo indica, o movimento conservador e o instrumento da desinformação não foram mera ocasionalidade das eleições de 2018. Na verdade, esse é um fenômeno que veio para ficar e definir boa parte do jogo político no país por algum tempo.