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O movimento de moradia nas eleições de 2022

11/10/2022

Diego Matheus de Menezes, Doutorando em Ciências Sociais (UFBA)

As eleições mobilizam inúmeros atores políticos. No Brasil, a trajetória da interação entre os movimentos sociais e o Estado reforça a importância do pleito eleitoral para os diversos setores que compõem a sociedade civil. Em especial, a partir do processo de redemocratização, o movimento de moradia logrou influenciar na agenda estatal ao inserir pautas de reforma urbana e de direito à cidade.

Apesar da longa trajetória das reivindicações populares por moradia digna no Brasil, a consolidação do movimento ocorreu na década de 70 com a ascensão das organizações de luta por moradia e com o adensamento de um amplo arranjo que conectou inúmeros tipos de coletivos, experiências e associações. Nas últimas décadas, emergiu um vasto número de entidades nacionais em defesa da moradia digna, como, por exemplo, o Movimento de Trabalhadores sem Teto, a União Nacional por Moradia Popular, o Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favela, a Confederação Nacional de Associação de Moradores, dentre outros.

O diálogo entre agremiações de bairro, setores da academia, coletivos, movimentos populares, grupos autogestionários, grupos da igreja católica e outros atores individuais e coletivos, possibilitou a formação de uma articulação complexa e heterogênea. A literatura especializada define o movimento de moradia como uma rede que aglutina variadas experiências de enfrentamento urbano.

Um dos importantes marcos para a conformação dessa rede foi a construção de uma plataforma por uma reforma urbana em 1987 com a criação do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU). Esse processo combinou a demanda da moradia digna com a disputa por um outro modelo de gestão da cidade e consolidou um dos principais marcos da gramática do movimento: a luta pelo direito à cidade.

A noção de direito à cidade utilizada é uma releitura do conceito de Lefebvre e associa as práticas de resistência urbana presentes na realidade brasileira a uma perspectiva de reversão do valor de troca para valor de uso das cidades. Relaciona, portanto, a moradia digna com a reordenação da produção do espaço urbano e estimula a proposição de um projeto político amplo e transversal.

A combinação de variadas estratégias como ocupações de imóveis ociosos, protestos, pressão institucional, dentre outros, contribuiu para feitos relevantes como a criação do Ministério das Cidades, do Conselho Nacional das Cidades e de normativas e instrumentos de gestão e participação social que deram origem ao Estatuto das Cidades.

Entretanto, as conquistas da articulação pela reforma urbana foram revertidas a partir de 2019 com o governo de Jair Bolsonaro. O Ministério das Cidades deixou de existir como ministério único e teve sua estrutura vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional. Além disso, o Conselho Nacional das Cidades foi extinto pelo Decreto 9.759 em 2019, suprimindo um dos mais importantes canais de diálogo com o Estado.

Tendo em vista o menor espaço das entidades na formulação e implementação do programa de acesso à moradia, as transformações na política habitacional com a substituição do Programa Minha Casa Minha Vida pela Casa Verde Amarela também impuseram desafios para a atuação do movimento. Agrava essa conjuntura o corte de 95% no orçamento do Programa Casa Verde e Amarela na proposta orçamentária para 2023.

O influxo no diálogo com o governo federal torna a eleição de 2022 um importante momento de reorganização. O desafio da atual conjuntura impõe ao movimento a necessidade de fortalecer seu programa. Em junho de 2022 foi realizada a Conferência Popular pelo Direito à Cidade com a adesão de 600 entidades relacionadas a coletivos, organizações populares, associações de direitos urbanos e academia. Segundo os dados da conferência, ocorreram 230 eventos preparatórios ao longo de 10 meses. A coordenação executiva da iniciativa demonstra sua diversidade e capilaridade ao ser composta pelas seguintes entidades: Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), Projeto Brasil Cidades (BR Cidades), Central de Movimentos Populares, Coalizão Negra Por Direitos, Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM), Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), Habitat para Humanidade, Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), Movimento Nacional de Luta Pela Moradia (MNLM), Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras por Direitos (MTD), Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), União Nacional por Moradia Popular (UNMP).

Com o objetivo de orientar a atuação das organizações nas eleições de 2022, a conferência possibilitou a construção de um programa coletivo. A Plataforma de Lutas Pelo Direito à Cidade conta com 16 eixos e vincula a luta pela moradia digna às agendas da ampliação da participação política, do combate às opressões de raça, gênero e orientação sexual, do meio ambiente, do planejamento urbano, da educação, dentre outras. Nesse sentido, ao construir uma diretriz que sistematiza as diversas temáticas da reforma urbana e do direito à cidade, a conferência preparou sua rede para atuar na campanha política e ampliar seu raio de influência.

Decerto, apesar da pactuação em torno de um projeto compartilhado, as diversas agremiações optaram por agir de forma descentralizada, empregando distintas estratégias. Uma das mais notáveis foi o lançamento de cartas-compromisso a fim de ampliar o engajamento de candidatos nas propostas da plataforma.

Destaca-se a Campanha Despejo Zero que lançou uma carta compromisso onde os candidatos participantes se comprometeram a combater as remoções forçadas. Segundo o Observatório de Remoções somente na região metropolitana de São Paulo, entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021, 37.278 famílias foram removidas e 223.757 estão ameaçadas de remoção. A iniciativa que visa eleger uma bancada favorável para impedir o avanço das remoções forçadas no Brasil conseguiu a adesão de 78 candidaturas a deputado federal e 98 candidaturas a deputado estadual.

Outro intento relevante foi o do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil – CAU/BR que lançou o manifesto “O Brasil precisa de Mais Arquitetura e Urbanismo” em formato de carta aberta às candidatas e aos candidatos nas eleições de 2022. Com o intuito de sensibilizar as candidaturas da importância da defesa da moradia digna, direito à cidade e planejamento urbano integrado, o manifesto contou com a participação do CAU/BR, do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), da Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo (ABEA), da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (AsBEA), da Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas (ABAP) e da Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo (FeNEA).

Muitos coletivos também promoveram campanhas de comunicação para divulgar candidaturas aliadas às bandeiras de direito à cidade. O Instituto Pólis, organização da sociedade civil que atua em defesa do direito à cidade, por exemplo, lançou o Vote Cidades Justas a fim de associar a luta pela justiça urbana com a importância de eleger mulheres negras, indígenas e pessoas trans.

Além da conscientização dos eleitores da importância da reforma urbana e do direito à cidade, diversos atores do movimento de moradia participaram diretamente dos pleitos eleitorais. De forma descentralizada, muitas entidades e lideranças apoiaram candidatos e promoveram atos de campanha voltados ao comprometimento às pautas comuns presentes na Plataforma de Lutas Pelo Direito à Cidade.

Ressalta-se que um dos candidatos a presidente, Léo Péricles do partido de esquerda Unidade Popular pelo Socialismo (UP), é membro do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). Apesar de não ter alcançado uma votação expressiva, o UP é um partido jovem (2016) com significativa participação do MLB.

Ainda sobre os presidenciáveis, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) possui em seu programa de governo uma diretriz específica sobre o direito à cidade, denotando certa permeabilidade de setores do movimento de moradia na campanha do petista. O projeto se compromete com a retomada de políticas de garantia ao direito à cidade, ao combate às desigualdades territoriais e a uma ampla reforma urbana.

No legislativo, um feito importante foi protagonizado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que optou por lançar candidaturas de militantes e elegeu dois candidatos dos cinco postulantes. Apesar das candidaturas de Claudia Ávila (PSOL) a deputada federal no Rio Grande do Sul, de Léo Suricate (PSOL) a deputado estadual no Ceará e Jô Cavalcante (PSOL) a deputada estadual em Pernambuco não alcançarem o número de votos necessários para a eleição, o movimento conseguiu números expressivos em São Paulo. Guilherme Boulos (PSOL), coordenador do MTST, foi o deputado federal mais votado na cidade de São Paulo com 1.001.453 votos e Ediane Maria (PSOL), coordenadora do MTST em São Paulo, foi eleita deputada estadual com 171.617 votos.

Por fim, ainda não é possível aferir a amplitude do impacto do movimento de moradia nas eleições de 2022. Contudo, a diversidade de formas de mobilização conectadas em uma plataforma comum, bem como, o feito eleitoral dos militantes eleitos fortalece as possibilidades de revitalização da reforma urbana e do direito à cidade na agenda estatal.