Blog

Porque o maior parceiro comercial do Brasil não foi citado nos planos de governo dos candidatos à presidência

11/10/2022

Manoel Schlindwein, Doutorando em Relações Internacionais (IRI-USP)

Após sucessivos e impressionantes marcos de crescimento e vitalidade econômica, engana-se quem pensa que a China tenha chegado ao seu limite. Indicadores divulgados recentemente ilustram como o apetite chinês segue insaciável. O ano de 2022 marcou o momento em que o país superou os Estados Unidos na qualidade e quantidade da produção científica e no lucro reportado de suas empresas – no ano anterior, foi a vez de tirar dos americanos o status de maior parceiro comercial da União Europeia. Apesar da inquestionável consolidação da Terra do Meio como uma superpotência global e, por consequência, como um parceiro comercial estratégico para qualquer nação, a China foi desprezada nos planos de governo dos candidatos à presidência do Brasil neste que é tido como o pleito mais importante desde a redemocratização do país em 1988.

A constatação veio de uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo publicada no final de agosto. O “maior parceiro comercial do Brasil e peça central no xadrez global” não foi citado nos programas dos quatro presidenciáveis mais bem colocados na disputa eleitoral segundo o instituto de pesquisas Datafolha. A falta de referências ao gigante asiático chama a atenção particularmente pelas questões econômicas. Em primeiro lugar, deve-se destacar que a China é o principal parceiro comercial do Brasil desde 2009. Além disso, a China é também o principal investidor no país, tendo aplicado por aqui cerca de 71 bilhões de dólares entre 2003 e 2019. E, mais ainda, o Brasil foi o destino líder dos investimentos da China no mundo em 2021, com participação de 13,6% do total, superando Holanda (10,5%), Colômbia (9,1%) e Indonésia (5,9%). A China é também a maior compradora do Brasil: apenas em 2021, foram gastos quase 87,7 bilhões de dólares em produtos, especialmente aqueles ligados aos setores de mineração e agronegócio. Por fim, vale lembrar que quase metade dos investimentos da China na América do Sul é feita no Brasil.

A “ausência notável”, como registrou o jornal, pode ser constatada ao se debruçar sobre os programas de governo do atual presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL), do líder das pesquisas e ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de Ciro Gomes (PDT) e de Simone Tebet (MDB). Em nenhum deles o país é citado – por determinação legal, todos os documentos foram apresentados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e estão disponíveis para consulta da população.

No caso do primeiro candidato, lê-se no tópico dedicado à política externa que o Brasil seguirá buscando “mercados, fontes de investimento e parcerias de cooperação com países de todo o mundo, sobretudo com os que tenham maior capacidade de contribuir para o desenvolvimento nacional” e também com aqueles em que se notam “fortes laços culturais e históricos”, além daqueles do “entorno geográfico nas Américas e no Atlântico Sul”. De modo geral, ele opta por fazer uso de um tom menos radical daquele que tem empregado ao longo do mandato e mesmo daquele que foi usado em seu programa de 2018.

Por sua vez, a proposta do candidato do Partido dos Trabalhadores faz referência à defesa da integração da América do Sul, da América Latina e do Caribe de modo a “manter a segurança regional e a promoção de um desenvolvimento integrado” Defende-se o fortalecimento do Mercosul, Unasul, Celac e os Brics, além de “trabalhar pela construção de uma nova ordem global comprometida com o multilateralismo, o respeito à soberania das nações, a paz, a inclusão social e a sustentabilidade ambiental, que contemple as necessidades e os interesses dos países em desenvolvimento”. Em resumo, o candidato retoma as bases daquilo que foi chamado de “política externa ativa e altiva”, implementada durante seu mandato como presidente, entre 2003 e 2011.

Já a proposta de Simone Tebet, a candidata mulher mais bem colocada nas pesquisas de intenção de voto, cita a intenção de reforçar a integração latino-americana, promover a integração e os investimentos em infraestrutura na América do Sul, e consolidar o Mercosul. A candidata menciona ainda a proposta de revigorar a atuação do país na Organização Mundial do Comércio (OMC), recuperar o prestígio da diplomacia brasileira nos diversos foros internacionais, engajar-se nas discussões de grupos plurilaterais como G-20 e Brics e, finalmente, avançar no processo de acesso à OCDE.

Por fim, no caso das propostas apresentadas por Ciro Gomes ao TSE, as menções à política externa são brevemente mencionadas dentro do que o candidato define como um novo Projeto Nacional de Desenvolvimento para o país. Nele, espera-se que o Brasil alcance indicadores de desenvolvimento semelhantes aos que Portugal apresentava em 2020. Para tanto, propõe-se especificamente que, entre outros, se viabilize “o crescimento econômico sustentável, sempre de forma soberana em relação aos demais países”. O programa de governo de Ciro Gomes cita ainda que as negociações comerciais e diplomáticas deverão seguir dois princípios fundamentais: “a defesa dos interesses nacionais e a soberania do país”.

Deste modo, a partir da análise das propostas dos candidatos, é possível notar que a China não é citada, ainda que sua relevância para o Brasil (e o mundo) seja significativa. Mas qual seria o motivo da ausência? O fato de não mencioná-la tratar-se-ia de uma escolha deliberada, sugere o pesquisador Wesley Sá Teles Guerra, coordenador do Observatório Galego da Lusofonia, na já citada matéria da Folha de S. Paulo. Ele avalia que não fazer referência aos chineses seria “uma forma de cautela”, pois “uma menção ao país poderia ser lida pela comunidade internacional como manifestação de alinhamento direto ou apoio”.

Na primeira edição do dossiê “Política externa e regionalismo: os programas dos presidenciáveis nas eleições”, elaborado em 2018 pelo Observatório de Regionalismo (ODR), uma relevante afirmação foi destacada: “a política externa não ganha eleições”. Logo na apresentação da segunda edição do dossiê, com os programas de governo dos candidatos de 2022, o professor do departamento de relações internacionais da Universidade Federal de Sergipe (DRI/UFS) Cairo Junqueira observa que a afirmação merece ser revista: “a política externa não ganha eleições, mas pode influenciá-las”.

Ele argumenta que, já em 2018, os temas ligados à diplomacia, outrora fatores secundários, passaram a fomentar “debates acalorados na corrida presidencial em virtude de polarizações políticas e do novo posicionamento de Jair Bolsonaro que viria a ser o próximo presidente eleito”. Nota-se, em especial, o fato de que ao incorporar as ideias de Olavo de Carvalho, espécie de mentor intelectual do bolsonarismo, a atuação do presidente nos temas relacionados à política externa rompeu com princípios tradicionais, como a autodeterminação, respeito às tratativas internacionais, multilateralismo, cooperação internacional, solução pacífica de controvérsias, pragmatismo e cordialidade com vizinhos regionais. O autor afirma que essas “marcas consagradas” mudaram sob o comando de Jair Bolsonaro.

Os pesquisadores Heithor Erthal e Luan Oliveira Pessoa, do mesmo dossiê do ODR, observam que ainda que as propostas de Bolsonaro para o pleito eleitoral deste ano mantenham o conservadorismo de direita e o neoliberalismo econômico, o “fator ideológico conservador-anticomunista não é mais o princípio ordenador do programa”. Os autores apontam uma profissionalização da campanha ao lidar com o tema, ainda que não citar a China no plano de governo seja uma escolha previsível. Cabe notar que, ao longo do mandato de Bolsonaro, não faltaram oportunidades em que ele, seus filhos e membros de seu governo insultaram ou insinuaram críticas infundadas sobre o país.

Portanto, a própria maneira pela qual a política externa brasileira foi conduzida por Bolsonaro é outro fator que ajuda a explicar porque a China não foi priorizada nas propostas dos candidatos. Se em governos anteriores o Brasil alcançou certa notoriedade e prestígio internacional, a diplomacia nunca foi o forte da presidência de Jair Bolsonaro, observa a professora Karina Lilia Pasquariello Mariano numa entrevista ao Jornal da Unesp (Universidade Estadual Paulista). Assim, explica ela, as propostas dos candidatos mais bem posicionados nas pesquisas buscam ressaltar a importância de recuperar a imagem internacional do Brasil. Não há propostas ousadas nem inovadoras; as agendas de política externa apresentadas pelos candidatos se limitam a reafirmar compromissos com governos e a necessidade de abertura comercial, reforçando práticas já adotadas pela diplomacia brasileira.