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UE-Mercosul: o acordo comercial após as eleições brasileiras
08/11/2022
Bruno Santos Fonseca, investigador doutorando do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA)
O acordo político alcançado em 28 de junho de 2019 entre a União Europeia e os Estados aderentes ao Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) permitiu definir o futuro do acordo comercial UE-Mercosul que vinha sendo desenhado há mais de duas décadas e que poderá atingir mais de €40 bilhões em importações e exportações. Todavia, uma série de entraves econômicos e políticos nos países de ambos os blocos, bem como o afastamento entre a UE e o governo brasileiro nos últimos anos, têm deixado pendente a ratificação do acordo.
Um acordo comercial moroso
O Mercado Comum do Sul, comumente conhecido como Mercosul, tem como Estados fundadores e signatários do Tratado de Assunção a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai, e seu propósito fundamental é a criação de oportunidades comerciais e de investimentos, através da competitividade das economias de cada país com o mercado internacional. Para além dos Estados fundadores, a Venezuela, também membro, encontra-se suspensa; e a Bolívia, em processo de adesão.
O interesse de aproximação entre Mercosul e UE surgiu pouco depois do início da década de 1990, porém só em 1995 os blocos assinaram o Acordo de Cooperação Inter-Regional Mercosul-UE, permitindo reafirmar o desejo de dar lugar a negociações para um futuro acordo de livre comércio. A base e os pontos de ação presentes no acordo pretendem combater as dificuldades inerentes à concorrência e às barreiras comerciais existentes entre os dois blocos – altas taxas de importação, procedimentos complexos, regulações técnicas e normas que diferem a nível internacional –, apresentando medidas de combate para suprimir essas limitações e preservando condições justas entre ambos.
Para o bloco do Mercosul, o acordo comercial tem como principal propósito desobstruir cerca de 92% do total das importações do bloco pela União Europeia e, em contraste, desbloquear 91% das importações europeias ocorridas pelos Estados do Mercosul – as estimativas apontam que o bloco sul-americano passe a possuir tratados e ações de livre comércio que perfarão cerca de 23,5% do PIB global da região. Desse modo, áreas e setores fundamentais do Mercosul permitirão dar espaço à procura e ao desenvolvimento de oportunidades econômicas reais: acesso de produtos agrícolas para o mercado europeu e partilha de serviços e conhecimento, permitindo o aumento da competitividade econômica do bloco.
Já para a União Europeia, o acordo permitirá eliminação de tarifas excessivas, possibilitando que as empresas europeias possam exportar – carros, maquinaria, equipamentos tecnológicos, produtos alimentares etc. – para os países do Mercosul; promoção do comércio, seguindo moldes distintos dos praticados na esfera do comércio internacional; rejeição do protecionismo por duas das maiores economias mundiais, por meio da implementação de regras justas e de padrões elevados; e desenvolvimento de políticas que protejam os trabalhadores e o meio ambiente (combate ao desmatamento e alterações climáticas), com incremento da responsabilidade social – pontos presentes no acordo e defendidos pela União Europeia, bem como pelo Mercosul em questões análogas.
Porém, com o alcance de um entendimento político em 2019 por ambas as partes, muitas críticas têm surgido, por forma a minar e estagnar a sua conclusão, sobretudo pela discussão ambiental e de sustentabilidade, a qual, para a União Europeia, formula-se como elemento primordial. Segundo Frederik Stender, economista no Instituto Alemão de Desenvolvimento e Sustentabilidade (IDOS), num artigo publicado no blog da London School of Economics (LSD), “o acordo foi criticado por negligenciar os padrões ambientais precários e a não observância da proteção dos povos indígenas no Brasil”, transparecendo as questões que têm levado ao entrave no seio da União Europeia.
Além disso, em inúmeras vezes, a conjuntura política e econômica nos países do Mercosul levou à estagnação das negociações, não só pelo protecionismo argentino, mas igualmente pela alteração de paradigma vivida no Brasil em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro – todas essas dimensões nutriram impasses constantes causados por questões estruturantes para a União Europeia, como direitos humanos, meio ambiente e setor agrícola.
A importância da pauta ambiental
Ao longo dos últimos anos, após o acordo de princípio mais amplo decidido em 2019, muitas críticas se têm produzido por várias esferas governamentais e indivíduos de ambas as regiões. Por um lado, na esfera europeia, líderes de cada Estado-membro e embaixadores, passando por eurodeputados e membros das instituições europeias (por exemplo, o comissário para a pasta do Meio Ambiente, Virginijus Sinkevicius), têm abordado em uníssono as preocupações ambientais e da necessidade de se apresentarem medidas concretas de combate ao desmatamento da floresta amazônica; por outro, vários membros do governo federal brasileiro (mandato de Bolsonaro) têm acusado os contrapartes europeus de recorrerem à questão ambiental como argumento infundado, apenas para defender uma pauta de protecionismo comercial.
As questões de proteção ambiental é uma das pré-condições para as instituições europeias, sobretudo para o Parlamento Europeu, para que os entraves causados pela ação política de “baixa credibilidade” do governo de Bolsonaro possam ser endereçados e, dessa forma, o acordo de livre comércio alcance sucesso.
Para além dessa crítica na esfera política, a sociedade civil e muitas organizações também têm replicado o desconforto com alguns pontos e problemas advindos do acordo comercial, a exemplo de Client Earth, Veblen Institute e La Fondation Nicolas Hulot pour la Nature et l’Homme, entre outras, denunciando que ocorreram falhas estruturantes nas negociações. Para a Client Earth, a Comissão Europeia “não considerou adequadamente o impacto potencial do acordo em questões como o desmatamento da floresta amazônica e o uso de pesticidas perigosos na agricultura”, como também não deu atenção às consequências que a falta de uma avaliação de impacto estratégica causaria à defesa das comunidades indígenas na região da floresta. Esta ação demonstrou a necessária transparência e avaliação do impacto na biodiversidade e na sustentabilidade, não só por parte da União Europeia, mas de igual soma por parte de todos os Estados do Mercosul, com maior incidência no Brasil, que possui a maior área da Amazônia.
O quesito ambiental será a mudança necessária para que o acordo possa avançar em todas as suas amplitudes, política, social e comercial. Tem-se assistido a uma mudança de posições, especialmente desde os resultados do segundo turno das eleições brasileiras, ocorridas no dia 30 de outubro, que declararam a vitória do candidato Luiz Inácio Lula da Silva – a título de exemplo, durante o governo do atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, a Noruega suspendeu a transferência de fundos para o combate ao desmatamento e, após a confirmação da vitória de Lula, o governo norueguês anunciou que retomará esses fundos, prevendo que a questão ambiental deixará de ser um tópico de desentendimento entre o Mercosul e a União Europeia.
O que esperar do acordo após as eleições presidenciais brasileiras
O rescaldo do resultado das eleições brasileiras transpareceu uma mudança de paradigma político e, de igual forma, a notória polarização que acompanhará a ação da política do governo do agora eleito Lula da Silva. Essa mudança que ameaça no horizonte acarretará muitas dificuldades no afastamento e “corte” cirúrgico de políticas e medidas que levaram ao afastamento e ao interregno no avanço do acordo UE-Mercosul.
Com a vitória de Lula, com 50,9% dos votos contra 49,1% de Jair Bolsonaro, a União Europeia assiste a mais uma oportunidade para destravar a ratificação do acordo, devido às consignações ambientais apresentadas pelo recém-eleito presidente. Ainda assim, há algumas ressalvas: partes do acordo poderão ser renegociadas para proteger a indústria brasileira, podendo confirmar-se mais um atraso na conclusão de um acordo que já leva décadas em negociação. Segundo a agência Reuters, durante o período eleitoral, o então candidato Lula da Silva mencionou que pretendia um acordo em “seis meses”, demonstrando interesse em concluir o acordo de livre comércio com celeridade.
Josep Borrell, alto representante da Diplomacia Europeia, mencionou no âmbito da sua participação de uma reunião da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), em Buenos Aires (Argentina), que o acordo UE-Mercosul “é muito mais do que um acordo comercial: no atual contexto geopolítico, é uma forma de revelar nossa disposição para agirmos em conjunto no cenário mundial”, acrescentando que a luta contra as mudanças climáticas, o desmatamento e a proteção da biodiversidade constarão de um protocolo adicional do acordo de comércio UE-Mercosul – sinais de que as negociações e as determinações começam a se desbloquear, sobretudo pelo horizonte político brasileiro atual.
Apesar das ressalvas, a nova perspectiva no que diz respeito às negociações entre a União Europeia e o Mercosul parece promissor, não só pela atual realidade manifesta do Brasil, país de evidente relevância no bloco, mas analogamente pelo desejo por parte da Comissão Europeia em dividir o acordo comercial, de forma a acelerar todo o processo de ratificação por meio do desenvolvimento e da adoção de medidas concretas e conclusivas – conforme fontes ligadas às negociações do acordo (comercial, político e de cooperação).
Em suma, não só a ação da União Europeia será árdua: o Brasil e os restantes membros fundadores do Mercosul também enfrentarão entraves para conseguir um entendimento entre si e da própria ação reivindicativa por parte da sociedade. Nesse sentido, o objetivo será tornar o acordo comercial um elo mais forte entre a União Europeia e o Mercosul, já que existem as oportunidades para fomentar e aproximar um mercado de cerca de 780 milhões de consumidores, criando benefícios geoestratégicos, econômicos e de partilha de desenvolvimento – com a ratificação do acordo, ele poderá ter impacto no processo de admissão do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), uma vez que a aproximação UE-Mercosul beneficiaria tal processo.